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(contos, ficção curta)
eduardo haak, 2021
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Miroslav está deitado, esperando a anestesia do dentista passar. Entorpecimentos localizados desse tipo sempre o fazem se sentir absolutamente incapacitado. O dia, quarta-feira, está seco e radiante. Um barulho de furadeira vem de algum apartamento não muito acima do dele. Esse tipo de ruído nunca o incomodou, ao contrário de ruídos percutidos e intermitentes. Seu telefone, que está sobre um antigo latão de gasolina transformado em criado-mudo, emite o sinal sonoro de que chegou mensagem. É Mariana, que diz que é pra ele pegá-la em casa às vinte e trinta. Embora saiba que Miroslav tem fobia de hospital, Mariana decidiu arrastá-lo à UTI onde seu marido está em coma induzido. Ela diz que quer se vingar de uma série de humilhações conjugais, beijando Miroslav na frente do sujeito, ainda que com ele em coma.Miroslav se levanta e fica parado, apalpando a parte anestesiada do rosto. A sala de seu apartamento não tem nas paredes qualquer imagem, quadro, pôster, etc., exceto a palavra przyjemnosc, escrita a lápis em letra minúscula perto do batente da porta principal. Essa palavra significa volúpia na língua nativa de seus pais, o polonês. Também não há livros físicos ali, tendo Miroslav no começo do mês depositado na caçamba de lixo reciclável do prédio os últimos cento e poucos volumes que ainda guardava. Ele caminha ao banheiro e abre o nécessaire. Avalia que sobraram poucos comprimidos de naproxeno sódico, calça-se e vai à farmácia comprar. Sobe a Conselheiro Brotero e, como sempre, conta até a janela do sétimo andar de um prédio cuja fachada é feita de pastilhas azuis e brancas. Engole a seco após fazer essa contagem. Pensa em Mariana, seios, dorso, torso, o efeito opioide que sente ao mergulhar o rosto em seus cabelos e inalar o odor resinado que sempre existe ali. Ao pedido que ela lhe fez, para acompanhá-la à UTI e beijá-la na frente do marido, Miroslav podia ter dito simplesmente que sim ou que não. Mas ele pressentiu que o alvo real daquela encenação não era o marido, pressentiu que Mariana queria ser vista sendo beijada, por certo por alguém da equipe médica, pressentiu que seu objetivo era atrair ou afastar algum pretendente amoroso, já que aquela encenação servia para as duas coisas, “afaste-se, já tenho meu homem”, “ei, que tal vir aqui brigar por mim, saindo no braço com esse sujeito que está me beijando?”. Depois, foi só Miroslav fazer uma breve e simples investigação, etc. Em se tratando de discernir os motivos por trás dos atos de uma mulher, apostar no motivo mais trivial será sempre a aposta certa.
Miroslav entra em casa, vai ao banheiro e guarda o naproxeno no nécessaire. Volta à sala, pega o telefone e digita à Mariana uma mensagem que contém um simples nome próprio, duas palavras que, ele sabe, terão amplo poder de desconcertá-la. Desliga o telefone, coloca-o sobre o latão criado-mudo e deita-se no sofá. Lembra-se, então, de que trancou à chave a porta da rua. Levanta-se, destranca a porta e volta a se deitar. Dentro de no máximo duas horas o efeito do anestésico terá passado totalmente. A porta da rua está aberta e ele sabe – sabe – que ela virá, e atravessará o portal da volúpia – volúpia, ainda que oblíqua e espalhada pelos poucos caracteres de um idioma que, talvez, não seja o idioma real nem dela, nem dele..
Até os quarenta anos Ofélia nunca havia tido a consumação sexual chamada orgasmo. As carícias íntimas masculinas (e ocasionalmente femininas) lhe agradavam, mas de modo difuso. Por ser especialmente bonita, as pessoas que a conheciam costumavam lhe atribuir uma vida erótica caracterizada pela plenitude e pela variedade. Nenhuma dessas pessoas cogitaria que Ofélia pudesse ser uma mulher sexualmente disfuncional.A busca pela origem de sua disfunção foi caracterizada por diagnósticos hipotéticos que nunca levaram a um tratamento eficaz (diagnósticos hipotéticos, já que os exames solicitados pelos especialistas que Ofélia consultou sempre redundaram em não apontar nada de errado em seu organismo). Igualmente fracassadas foram suas incursões por psicólogos, terapeutas sexuais e instrutores de kundalini yoga.Às vésperas de completar quarenta e um anos Ofélia foi ao dentista fazer a avaliação semestral. O doutor C. Cerveira tirou uma radiografia panorâmica e disse que ela teria de extrair os terceiros molares, que estavam inclusos. A cirurgia transcorreu sem maiores incômodos, apesar da apreensão inicial de Ofélia (arrancar quatro dentes com um dentista chamado Calígula, etc.). Foi então que Ofélia, durante os dias de convalescença e início da cicatrização, teve sua primeira descarga orgástica. Essa capacidade orgástica, porém, só se manteve até a cicatrização das gengivas se completar.Um novo périplo pelos mesmos especialistas que Ofélia já consultara não levou a qualquer esclarecimento – nenhum médico soube explicar por que um caso de anorgasmia foi temporariamente curado por uma cirurgia de extração de dentes.Ofélia queria provar de novo aquela sensação efervescente, aquela angústia deliciosa, e para isso experimentou ir a um daqueles dentistas que simplesmente fazem o que o paciente pede, um tiradentes tradicional que lhe extraiu um dos segundos molares da arcada inferior. Nos onze dias que durou sua capacidade orgástica após o procedimento exodôntico Ofélia fez sexo com cinco homens diferentes e atingiu o clímax sessenta e uma vezes.A vida de Ofélia então passou a ser o cálculo de quantos dias ainda dispunha como mulher capaz daquele consummatum est: restam-me dezoito dentes naturais (os dentes extraídos foram sendo substituídos por implantes), portanto terei mais ou menos cento e oitenta dias. Aos quarenta e seis anos (e aproximadamente mil e duzentos orgasmos) lhe sobravam na boca apenas quatro dentes naturais, ou seja, a possibilidade de quatro períodos orgásticos que durariam, cada um, pouco mais de uma semana. Ofélia estava passando férias em Playa Hermosa, no Uruguai, quando conheceu Esdras.Esdras saíra do Brasil e se estabelecera no país vizinho já havia quase vinte anos. A primeira conversa de Ofélia e Esdras durou quarenta minutos, e a segunda conversa deles durou quase oito horas. Foi uma daquelas conversas que acontecem duas ou três vezes na vida de uma pessoa, em que tudo que é fundamental é contado ao interlocutor. Ofélia contou sobre sua estranha disfunção e disse estar insegura de ir para a cama com Esdras naquele momento. Que para gozar fazendo sexo ela teria de arrancar um dos quatro dentes naturais que lhe restavam. Que talvez fosse melhor que eles jamais tivessem se conhecido, que o amor invariavelmente só complica as coisas. Esdras disse, não se preocupe, vamos apenas ficar juntos, no escuro, ouvindo nossas respirações. Os dois foram para o quarto e se deitaram. Ofélia então experimentou se deixar ser penetrada e, ao ouvir no escuro a respiração de Esdras misturada à própria respiração, teve um orgasmo tão forte que a única analogia que lhe passou pela mente foi a de mil dentes sendo arrancados de uma só vez..
Meu primo Gato vendeu o Alfa-Romeo 2300 e comprou um Monza SL/E, vermelho. O Alfa-Romeo, 1977, tinha sido do meu pai. Foi dentro do Alfa que, ano passado, fiz sexo pela primeira vez. Eu e o Gato estávamos na lanchonete Mil Milhas, em Interlagos, e pegamos lá duas fulanas. Ficamos rodando com elas e acabamos entrando na rua que dá acesso ao Clube de Campo do Castelo, uma rua erma, sem asfalto, onde há apenas campos de futebol de várzea e terrenos baldios. Depois fomos levar as mulheres até onde elas moravam, um lugar superlonge, parecia que não chegava nunca. Na volta o Gato me perguntou se eu tinha dado uma mijadinha depois de tirar o pau de dentro da mulher. Eu disse que não e perguntei por quê. Gato respondeu que quando a gente mete numa fuleira tem que mijar depois, que a urina limpa a uretra, que fazendo isso dá pra evitar uma gonorreia, oitenta por cento de chance de não pegar. Pedi então para ele parar o carro numa rua com pouco movimento e postei-me em frente a uma árvore e fiquei ali, esperando que o jato de urina viesse, mas nada do jato vir, então o cachorro de uma casa começou a latir e eu pensei, cala a boca, cachorro imbecil, olha que se você não parar eu vou até aí e mijo nesse seu focinho latidor, então o vigia noturno da rua apareceu com o trinta e dois na mão e eu disse pra ele, ô meu chapa, tô meio no aperto aqui. O sujeito se afastou e tentei mais um pouco fazer o jato de urina sair, mas não adiantou, não veio nada, então entrei no carro e seguimos até o Itaim e paramos no Milk & Mellow e eu bebi duas garrafas de Coca-Cola, uma em seguida da outra, e fui ao banheiro para ver se finalmente saía alguma coisa, mas nada, nada de mijo, aí eu cismei que meu pau já estava começando a arder, os gonococos fazendo a festa, proliferando-se à razão de dois, quatro, oito, duzentos e cinquenta e seis, dezesseis mil cento e oitenta e quatro, então eu saí do banheiro e disse ao Gato, vamos procurar uma farmácia. Rodamos pelo Itaim todo e não achamos nenhuma farmácia aberta, então fomos até uma na Nove de Julho, lá perto dos túneis, uma que fica aberta vinte e quatro horas. Comprei camisinha e permanganato de potássio e voltamos para o Itaim e entrei correndo em casa e fui ao banheiro e enchi uma camisinha com água e joguei o permanganato na água e sacudi bem e enfiei o pau na camisinha cheia daquele líquido lilás e fiquei andando pelo banheiro, tentando me convencer de que aquilo ia mesmo fazer efeito e cogitando que talvez tivesse sido melhor eu já ter tomado uma benzetacil, aquela injeção de penicilina que dizem que dói pra caralho. Aí essa coisa de sentir meu pau enfiado num espaço apertado e úmido começou a me dar tesão e o pau endureceu dentro da camisinha e eu fiquei com vontade de bater uma e me sentei na privada e tirei o pau de dentro da camisinha e comecei a friccioná-lo, olhando para a camisinha cheia de água e permanganato de potássio, que eu segurava com a mão esquerda, então comecei a imaginar que aquela camisinha era um seio, sim, a forma arredondada era mais ou menos análoga a de um seio, o modo como a coisa balançava também, boing, boing, boing, então eu me lembrei dos gonococos, da benzetacil, da vez em que o Gato foi contaminado por uma mulher que nem era vadia, quer dizer, não era dessas vadias de rua ou de casa de massagem, dessas que trepam por grana, parece que a mulher era casada com um oficial da marinha que estava sempre fora de São Paulo e que então o Gato ia comê-la no apartamento dela, uma vez eu disse, cara, você é maluco, você acha que os porteiros do prédio não contam tudo pro oficial-corno?, se bobear os baianos até trabalham para o SNI, como informantes mesmo, aí o Gato disse, SNI porra nenhuma, eu estava pensando nessa história e pensando que o período de incubação da gonorreia pode durar até uma semana, mas eu estava pensando também na Tássia Camargo e na Carla Camurati e estava olhando para a camisinha-seio e estava friccionando meu pau enquanto pensava na Tássia Camargo, na Carla Camurati, na Aldine Müller, na Nicole Puzzi, na Helena Ramos, na Maria Zilda, então eu pensei, fodam-se, fodam-se os gonococos..
Estou sozinho numa casa que deve ter uns setecentos metros quadrados. Vim me esconder aqui por causa de uma mulher.Primeiro ela disse que ia fazer macumba com terra de cemitério pra me matar, depois disse que estava procurando na deep web um matador de aluguel pra fazer o serviço.
A casa é de um amigo que passa a maior parte do tempo no Rio de Janeiro. Praticamente não saio dela, só saio de manhã pra correr um pouco no Parque Villa-Lobos. No restante do dia eu vejo uns filmes e leio uns livros.
Termino de almoçar e decido abrir a porta balcão de uma varanda, então o alarme antifurto da casa dispara. Não faço a menor ideia de como desligá-lo e penso que o alarme, com certeza, é desses que imediatamente acionam a polícia. Penso que se eu não conseguir localizar meu amigo no Rio, sim, emprestei a casa pra ele, serei tratado como suspeito de arrombamento, furto, etc.
Pego meu carro e vou até a agência de publicidade onde ela trabalha e fico esperando até que ela volte do almoço. Vejo-a finalmente vir caminhando, acompanhada de uma colega. Ando em sua direção e lhe dou um tapa no rosto. Ela cai e me olha com perplexidade.
Digo, macumba porra nenhuma, o.k.?, matador de aluguel porra nenhuma, o.k.?
A colega pega o celular e começa a filmar e eu digo, ótimo, é pra filmar mesmo, depois põe o título, como tratar uma mulher que tem o hábito de fazer ameaças de morte e intimidações.
Viro-me e vou caminhando na direção do carro, então Paola, que ainda está no chão, começa a chorar e diz, Mauro, me perdoa!, e eu giro o tronco e digo com a mão em concha ao redor da boca, perdoa é o caralho, e vá à merda, você.
A sensação que isso dá é muito boa, mandar à merda uma pessoa que merece isso, ir à merda.
Eu estava pensando na palavra derrelição, que significa desamparo, e estava sentado no café com um ar distraído, mas eu não estava distraído, estava decorando um trecho do livro que estava lendo, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, eu estava repassando mentalmente essa frase e devia estar com aquela expressão vaga no rosto, com os olhos fixados no vazio, quando percebi o sujeito me encarando, um desses sujeitinhos de boné e peito estufado com postura de cão territorial, uma postura de rottweiler olhando fixamente para um potencial invasor do seu espaço, um desses sujeitos cúpidos, gananciosos, ferozes, devoradores e animalizados que provavelmente vão acabar se dando muito bem no mundo corporativo das multinacionais e dos bancos. Então ele me disse, que quê tá olhando? E foi só aí que eu percebi que o sujeito estava acompanhado de uma mulher, quer dizer, eu até havia reparado antes, mas é claro que eu não estava encarando a mulher, que era bonita e tinha meio jeito de cadela no cio, eu não gosto de confusão e sei que esses sujeitos são doidos pra arrumar treta e logo sair dando porrada, eu conheço bem o tipo, na minha faculdade só dava esse tipo de sujeito, esses arrivistas cheios de testosterona, geralmente vindos da classe média baixa, esses arrivistas que não deixam qualquer dúvida de que hão-de-vencer e que por isso sempre pegavam as garotas mais bonitas e gostosas de lá, algumas eram putas de luxo, todo mundo sabia, mas e daí?, aquilo era uma latrina mesmo, uma dessas merdas de faculdade que os alunos assinam a lista de presença e depois vão para o bar beber, foi por isso que acabei largando, por isso e porque não estava dando pé pagar as mensalidades, na época eu já trabalhava como passeador de cachorro e esse trabalho não dá muito dinheiro, sair por aí segurando a coleira de cinco ou seis cães, esperar os bichos mijarem e cagarem e depois recolher da calçada aquele excremento todo, minha mãe recebe uma miséria de aposentadoria, então minha renda praticamente toda vai para as nossas despesas domésticas, pão, açúcar, batata, farináceos, farelos, carboidratos simples de rápida absorção, fora os remédios dela e os meus, que eu preciso tomar por causa da epilepsia, alguns desses remédios que eu tomo até são baratos, mas alguns são caros, faz anos que não tenho nenhuma crise, hoje o sujeito pode ser epilético e ter uma vida totalmente normal, é só tomar os remédios direitinho, coisa que eu nunca deixo de fazer.Como eu estava dizendo, o cara cismou que eu estava olhando para a namorada dele e disse, que quê tá olhando, hem, ô babaca?, então ele se levantou e veio até mim e aproximou o rosto do meu e bateu com a testa no meu nariz. A pancada me deu uma dor aguda e me fez sentir um gosto amargo no céu da boca e a namorada do cara segurou o braço dele e disse, para, Sérgio!, mas eu notei que no fundo ela devia gostar de ver o sujeito bancando o machão, a voz dela estava obviamente excitada, como quando uma pessoa está com vontade de rir mas tenta disfarçar, então os dois foram embora, o rottweiler e a cadelinha no cio, e eu fui até o banheiro lavar o rosto, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de ilusões, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto em teu peito, e também seu deserto, o trecho do livro que eu estava decorando me veio inteiro, então eu saí do café e fui andando até a minha casa, andando e pensando. Não estava sentindo ódio, ou melhor, não estava sentindo ira, ira alguma. Quando eu era mais jovem eu odiava, ficava babando, estrebuchando de raiva, mas isso é porque eu não sabia pensar, pensar com clareza e método, eu me decepcionava com alguma coisa e, pronto, ficava lá, todo cheio de ódio impotente, me decepcionava porque aquelas mulheres lindas do tipo que acabam se casando com libaneses ricaços, turcos cheios da nota, etc., nunca se interessavam por mim e, pronto, ódio-ódio-ódio, sim, por que as únicas mulheres que eu consigo pegar são essas mocorongas feiosas de faculdade de letras?, sabe o tipo?, é, aquelas meninas com aquelas bundinhas melancólicas, envergonhadas, minúsculas, enfiadas pra dentro, sim, parece que essas meninas vivem com pavor de levar um chute no meio do cu, mulher tem que ter uma bunda não necessariamente grande, mas que sugira generosidade, uma bunda que pareça dizer ao mundo, vinde a mim, etc., eu ficava pensando essas coisas e aos poucos meu pensamento foi deixando de ser só um monte de frases soltas e desajeitadas e foi se tornando um pensamento claro e metódico, perceber essa minha evolução foi uma das maiores alegrias que já tive, o sujeito pode ser feio, pobre e epilético, mas se ele sabe pensar com clareza e, consequentemente, sabe com o que realmente pode contar, as possibilidades dele praticamente se igualam às de qualquer bacana.Não tive dificuldade de descobrir algumas coisas sobre o sujeitinho de boné e peito estufado que bateu com a testa no meu nariz. Sei onde ele mora e sei os trajetos que ele faz a pé – hoje, por exemplo, ele vai passar por uma rua de pouco movimento. Cuido do cane corso de uma senhora viúva, levo o bicho para passear, o cachorro na verdade era do marido dela, a velhota não teria a menor condição de segurar aquela fera de quase sessenta quilos numa coleira, ela sempre me diz, o Boris adora você, adora!, rebatizei o Boris como Lavrenti Beria quando comecei a treiná-lo para que ele obedecesse aos meus comandos, Lavrenti Beria, para quem não sabe, era o chefe de polícia secreta do Josef Stalin, etc., já antecipei também todas perguntas que a polícia poderá me fazer, como foi que isso aconteceu?, ah, eu sou passeador de cães e levei esse cão pra passear e aconteceu de eu ter uma crise epilética, aí, quando recobrei a consciência, ele havia atacado e matado o rapaz. Meu pensamento é claro e metódico, meu temperamento é equânimo, palavra que quer dizer desapaixonado, logo minhas ações todas estão fadadas ao sucesso.
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Murilo está dizendo que viu hoje um Electra das Lineas Aereas Paraguayas descendo em Congonhas com um dos motores parados. Murilo é obcecado pelo Paraguai e tem na carteira uma cédula de cinco guaranis, que é o dinheiro que circula no Paraguai. A imagem que aparece na cédula de cinco guaranis é a de uma mulher com jeito de cigana, segurando um vaso, la mujer paraguaya, como está escrito no canto da cédula. Estamos na sala do apartamento do Murilo, uma sala cheia de vasos com samambaias, rendas portuguesas, antúrios. Estamos bebendo uísque Ballantine’s e fumando cigarros John Player Special de uma embalagem cilíndrica, de plástico, onde cabem cem cigarros. O disco que está tocando no aparelho de som é o Breakfast in America, do Supertramp. Os pais de Murilo estão viajando e nós estamos agora conversando sobre as pessoas que ou-temos-certeza, ou-desconfiamos que são informantes do SNI. Aquele mulato pernóstico que vive no Gimba e que toda semana aparece com uma moto ou um carro diferente: quase-certeza. Aquela coroa que é corretora de imóveis e que usa um coque estilo Eva Perón e que volta e meia está aqui no prédio e que todos nós desconfiamos que deve render uma fodaça: é-possível-que. (Eu já descasquei altas bronhas pensando nela, imaginando ela chupando meu pau enquanto eu desfazia aquele coque Eva Perón e apalpava suas tetas incrivelmente firmes para uma mulher que deve estar beirando os cinquenta.) O sujeito que mora no 102, o que fez CPOR e que ninguém sabe direito no que trabalha: quase-certeza-absoluta. Aquele outro sujeito meio com voz de anão que costuma aparecer no fliperama da Rua Iguatemi e que disse que tinha um esquema pra conseguir dispensa do serviço militar, cem dólares por cabeça: talvez-sim. Meu primo Gato, que embora viva de fazer saques no cofre do padrasto (cofre onde o padrasto guarda as propinas que recebe como fiscal do ICMS) e que também tire umas granas comendo bichas endinheiradas que pegam rapazes bonitos em fliperamas, sim, é possível que o Gato seja informante do SNI, porque ele, além de inescrupuloso, é ganancioso.Decidimos passar uns trotes telefônicos e ligamos para o careca comunista, que é maestro e é parente distante do Murilo. O Murilo sempre conta histórias sobre esse parente – diz que ele costuma fazer orgias num hotel no Guarujá, diz que ele é giletão, diz que a própria mulher come ele com um pinto de plástico, etc. O maestro atende o telefone e o Mug, fazendo uma voz áspera e marcial, identifica-se como major Venceslau, do centro de informações do exército, e diz que o maestro está intimado a comparecer à sede da segunda região militar para prestar esclarecimentos sobre contrabando de material pornográfico, material esse que contém fotos de pederastia, etc. Mug desliga o telefone gargalhando, diz que o maestro mandou ele foder-se, e assim que Mug põe o aparelho no gancho o aparelho toca e ele atende, mas quem está do outro lado da linha permanece em silêncio enquanto o Mug diz, alô?, alô?, então a pessoa desliga e o Mug põe de novo o aparelho no gancho e cinco minutos depois o telefone toca de novo e mais uma vez a pessoa que está do outro lado da linha não diz nada, enquanto o Murilo, que foi atender dessa vez, diz, e aí, sua bichona, não vai falar?, quer levar uma trolha no meio do cu?As duas ligações atiçam nossa paranoia, quem será que foi?, estranho acontecer isso logo em seguida ao trote, aí o Murilo diz que foi coincidência e o Mug diz, é, pode ser que seja coincidência, mas pode ser que não seja, esse seu parente aí, o careca comunista, não é metido com gente importante?, e o Murilo responde, metido com gente importante da TV e do meio artístico, não com militares, o apelido dele é careca comunista, é só pensar com um pouco de lógica. Aí deliberamos mais um pouco e concluímos que alguém ter o apelido de careca comunista não significa nada, que carecas comunistas podem perfeitamente trabalhar para o SNI como informantes ou até coisa mais graduada. Bebemos mais uísque e fumamos mais John Player Specials e decidimos ir dar uma volta de carro e vamos até Congonhas e ficamos lá, perambulando, aí compramos um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos e o Mug se lembra daquela história do hangar da VASP, que tinha um avião antigo lá, a carcaça de um Caravelle que servia de motel para menores de idade, que o Anuarzinho disse que foi lá descabaçar com uma puta e que a mulher teve um ataque de pânico porque o avião estava cheio de baratas e que por isso o Anuarzinho não descabaçou naquela vez, e eu penso que na última vez em que estive aqui em Congonhas eu vi os caras da banda A Cor do Som e vi uma menina que estudou comigo no Cristo Rei, a Stella-Stellá, pedindo autógrafos para o Dadi e o Mu, então vamos embora de Congonhas e na Rubem Berta um carro da polícia emparelha com a gente e o tira que está na janela nos aponta aquele farol de mão e eles mandam a gente encostar e somos revistados e os caras fazem a maior onda, dizendo que vão encaminhar os menores – eu e o Mug – para a Febem, aí, quando a gente já está bem com o cu na mão o policial com pinta de chefe diz, vai, sumam daqui, e vão direto pra casa, hem?, rua essa hora não é lugar pra criança, então voltamos para o Itaim e o Murilo me deixa na minha casa e eu entro e vejo que meus pais estão dormindo. Subo para o meu quarto e me deito, mas minha cabeça não para de funcionar, parece que tem uma britadeira dentro dela, então me levanto e vou até o banheiro e pego um Valium 10 mg na frasqueira da minha mãe e engulo o comprimido e vou até uma das extensões e tiro o telefone do gancho e olho durante um tempo para o aparelho e observo os números meio manchados de tinta por causa do hábito que as pessoas têm de discar o telefone usando canetas esferográficas e sinto que ao tirar o telefone do gancho estou me livrando de uma ameaça difusa, inespecífica, mas não por isso menos aterrorizante, então vou para o quarto e me deito e espero que o Valium logo faça efeito e que me extinga por umas oito, nove horas.
Os pais de Aurélio contrataram uma cuidadora para ficar com ele por algumas horas. Aurélio e a cuidadora, que se chama Violeta, estão agora numa das salas do apartamento. Aurélio, que tem catorze anos, lê um livro e Violeta folheia uma revista.
AURÉLIO (sem tirar os olhos do livro): Primeira vez?
VIOLETA (olhando para Aurélio): Hum? Primeira vez?
AURÉLIO (olhando para Violeta): Que você faz esse trabalho. Cuidar de criança.
VIOLETA: Não, não, já fiz isso algumas vezes.
AURÉLIO: Legal.
Aurélio fecha o livro e o coloca sobre o braço do sofá. Violeta pega o telefone e fotografa uma página da revista.
AURÉLIO: Eu falei criança, embora, como você pode ver, eu não me inclua exatamente na categoria. Tenho catorze anos.
VIOLETA (distraída): Hum-hum.
AURÉLIO: Você acha o.k. esse trabalho?
VIOLETA (pensativa): Hum... É. Acho o.k.
AURÉLIO: Já te aconteceu alguma coisa fora do comum trabalhando com isso?
VIOLETA: Não. (Fecha a revista.) Que coisa fora do comum poderia acontecer?
AURÉLIO: Sei lá. Você passar a noite numa casa mal-assombrada, alguma coisa assim.
VIOLETA (rindo): Não, não, graças a Deus, não. Pra ser sincera a coisa mais incomum que já me aconteceu nesse tipo de trabalho está acontecendo aqui, hoje. Nunca tinha tomado conta de alguém da sua idade. Seus pais não te deixam ficar sozinho?
AURÉLIO: Eu tive uma convulsão há dois anos. Eu nunca mais tive nada, mas como os médicos ainda não descartaram o diagnóstico de epilepsia, eles ficam assim, preocupados o tempo todo.
VIOLETA: Entendi. Bom, eles não me falaram nada sobre isso. Você não toma nenhum remédio?
AURÉLIO: Não. (Silêncio.) Ei, fica tranquila, eu não vou ter uma crise logo hoje. A não ser que você me faça rir.
VIOLETA: Hem?
AURÉLIO: Melhor dizendo, a não ser que você me faça estourar de rir. Rir mesmo, aquelas risadas de travar o queixo. Eu tive a convulsão assim, de tanto rir.
VIOLETA: Nossa. E o que quê te fez rir tanto?
AURÉLIO: Foi um vídeo que um amigo me mostrou. Um vídeo de uma orgia só com portadores de Síndrome de Down.
VIOLETA: Cê tá falando sério?
AURÉLIO: Claro que estou.
VIOLETA: E onde vocês acharam isso?
AURÉLIO: Foi ele que achou. No archive ponto org. Um filme amador rodado em super oito, nos anos setenta.
VIOLETA (indignada): E você acha que uma coisa degradante assim é motivo de graça?
AURÉLIO: Não, não acho. É que esse meu amigo reeditou o filme, botou uma música chamada Mongoloid, de uma banda antiga chamada Devo. Botou a música com rotação acelerada. Sei lá. Acabei... rindo. (Aurélio se levanta.) Nunca te aconteceu de você rir de uma coisa imprópria?
VIOLETA: Não que eu me lembre.
AURÉLIO: O.k. (Caminha até a janela da sala, olha para a rua, volta-se para Violeta.) Ó, não vai você agora ficar achando que eu sou um tarado, um depravado...
VIOLETA: Depende. E se eu achar isso pode crer que eu te largo aqui sozinho.
AURÉLIO: Não vai precisar. (Pegando o telefone.) Vou pedir alguma coisa no China in Box. Você quer?
VIOLETA: Não. Obrigada.
Aurélio telefona e faz o pedido, boa noite, eu queria fazer um pedido... é o carne com legumes pequeno executivo mais rolinho primavera... exato... hum... pode ser... Coca Zero... não, não... dinheiro, troco pra cinquenta... isso... o.k., obrigado. Devolve o telefone à base e volta a se sentar.
VIOLETA (contando dinheiro): Eu tô com duas notas de cinquenta euros aqui, tem como você me trocar por reais? Se não for ser incômodo.
AURÉLIO: Cem euros?
VIOLETA: É, eu fiz um trabalho ontem, o cara me pagou assim.
AURÉLIO: Como é que está o câmbio?
VIOLETA (consultando): Deixa eu ver... euro a seis e... dá seiscentos e vinte e cinco.
AURÉLIO: Beleza. Quer trocar agora?
VIOLETA: Não precisa. Depois a gente faz.
AURÉLIO: O.k.
Aurélio vai até uma adega portátil, de onde tira uma garrafa de vinho. Pega também um saca-rolha, que introduz na garrafa.
AURÉLIO (girando o saca-rolha): Foi um trabalho desses, de cuidar de criança?
VIOLETA: Os cem euros?
AURÉLIO: É.
VIOLETA: Não, não foi. Foi um trabalho de modelo vivo.
AURÉLIO: Aquela coisa de ficar nua pras pessoas desenharem? (Abre a garrafa.) Quer vinho?
VIOLETA: Quero, obrigada. É, às vezes eu poso pra alunos de desenho.
Aurélio tira de um armário duas taças. Estende uma a Violeta e a serve.
AURÉLIO: Eu desenhava bastante, até uns onze, doze anos. Aí parei.
VIOLETA: Por quê?
AURÉLIO (sentando-se e servindo-se): Sei lá. Encheu.
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: Pra te dizer a verdade eu me encho de tudo depois de um tempo. Acho que quando eu tiver uns vinte e cinco anos não vai ter sobrado nada, eu vou ter me enchido de todas as coisas que existem. Tal coisa?, ugh, encheu, tal coisa?, encheu.
VIOLETA (rindo): Credo, rapaz.
AURÉLIO: É sério.
VIOLETA: Mas... nunca mais te deu vontade?
AURÉLIO: De desenhar?
VIOLETA: É.
AURÉLIO: Às vezes... um pouco.
VIOLETA: Eu acho que só tá te faltando um pouco de estímulo. (Silêncio.) Quer me desenhar depois?
Blackout.
Blackout, em linguagem técnica teatral, significa escurecimento total do palco.
Quando o palco é aceso, mais ou menos uma hora e meia se passaram. Aurélio e Violeta estão sentados à mesa de jantar.
VIOLETA (brincando com os palitinhos que vieram na refeição chinesa de Aurélio): Ó, tenta resolver essa... faca está pra revólver assim como garfo está pra?
AURÉLIO (pensativo): Hum...
VIOLETA: Garfo e faca... revólver e?
AURÉLIO (olhando para o garfo que usou): Faca está para revólver assim como garfo está para... batedeira elétrica?
VIOLETA: Batedeira elétrica? (Rindo.) Não, não.
AURÉLIO: Sei lá. Existe resposta pra isso?
VIOLETA: Existe.
AURÉLIO: Rastelo. Aqueles rastelos grandes, pra carpir mato.
VIOLETA: Não.
AURÉLIO: Desisto. Conta aí, faca revólver, garfo...?
VIOLETA: Não, senhor. Quebra a cabeça aí mais um pouco.
AURÉLIO: Sem chance. Agora, sem qualquer chance. Esse vinho e essa comida me chaparam total.
VIOLETA: O.k.
Aurélio se levanta e vai se deitar no sofá. Violeta vem atrás dele e anda até a janela.
VIOLETA (forçando um tom casual): Diga uma coisa... seus pais devem chegar que horas mais ou menos?
AURÉLIO: Hum. Difícil saber.
Violeta discretamente vê as horas e se volta a Aurélio.
VIOLETA: Vai, menino, enxota esse sono aí, eu não tô a fim de ficar aqui nesse baita apartamento sem ninguém pra conversar.
Aurélio se senta, esticando as pernas sobre uma mesa de centro. Violeta também se senta no sofá, a uma almofada de distância de Aurélio.
AURÉLIO: Ó, esse negócio do faca está pra revólver assim como garfo está agora não sai da minha cabeça. (Riso seco, nasal.) Culpa sua.
VIOLETA (simpática e debochada): Culpa sua, oras bolas, que tá aí, tão chapado de vinho que não consegue resolver um probleminha de lógica elementar.
AURÉLIO: É.
VIOLETA: Escuta, aquela coisa que você falou sobre o filme da orgia com os portadores de Down... aquilo é verdade mesmo?
AURÉLIO: Sim.
VIOLETA: E... só por curiosidade... eles fazem as coisas normalmente? Não fica uma coisa, sei lá, meio desengonçada?
AURÉLIO: Não, é normal. Claro que eles não são atletas sexuais, tem aquela coisa meio molenga deles. Fora isso, normal.
VIOLETA: Mas com que propósito esse filme foi feito?
AURÉLIO: Sei lá eu. É uma daquelas coisas bizarras dos anos setenta, a época da liberação sexual, da quebra de todos tabus, daquelas seitas que obrigavam as mães a masturbarem os filhos...
VIOLETA: Cruz, credo... Você não se excita com essas coisas, não, né?
AURÉLIO: Claro que não.
VIOLETA: Nada de orgasmo, só ataque epilético.
AURÉLIO: É. Freud provavelmente escreveria um livro sobre mim. Jovem de catorze anos dado a ter convulsões sempre que vê mongoloides fodendo.
Aurélio e Violeta riem.
Silêncio.
AURÉLIO (cruzando os braços atrás da nuca): Violeta... posso te fazer uma pergunta?
VIOLETA: Claro.
AURÉLIO: Uma hora aí você me perguntou se eu queria te desenhar. A gente acabou saindo do assunto e tal... e...
VIOLETA: Sim?
AURÉLIO: Na verdade eu não vou te fazer uma pergunta, eu vou fazer um encadeamento lógico, depois propor uma conclusão, aí você diz o que você acha. O.k.?
VIOLETA (um pouco melindrada): O.k. Quer dizer... acho que o.k.
AURÉLIO: Posso começar?
VIOLETA: Vai, pode.
Aurélio fica de pé. Vai até a mesa, se serve de vinho e volta.
AURÉLIO: Muito bem. Numa sexta-feira qualquer do outono de 2020 você chega num apartamento pra fazer um trabalho que você tá habituada a fazer, tomar conta de criança. Só que você descobre que não é exatamente uma criança dessa vez, mas um latagão de catorze anos.
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: Aí o latagão de catorze anos te conta uma história bizarra que envolve convulsão e orgia de deficientes mentais, o que denota alguém com grande curiosidade sexual e absoluta inexperiência nesse âmbito.
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: E isso te dá uma ideia. Mas, pra pôr essa ideia em prática, antes você precisa descobrir algumas coisas.
VIOLETA: Por exemplo?
AURÉLIO: Saber se o latagão tem dinheiro em espécie em casa. (Violeta ri.) Então você joga o papo, me troca cem euros?
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: E o latagão diz, sim, claro, sem problema. (Dá um gole no vinho.) Bom, ao saber que o latagão tem dinheiro em casa, imediatamente você passa a tratá-lo melhor e diz que ganhou esses euros posando nua para um estudante de desenho. O que, obviamente, não é verdade. Ninguém paga essa grana toda por um trabalho de modelo vivo.
VIOLETA: Muito bem. E?
AURÉLIO: Nessa altura o latagão sabe que a bela baby sitter também trabalha tirando a roupa e que, pra tirar a roupa, metonímia, ela cobra o equivalente a cem euros. Papo vai, papo vem, ela propõe, talvez de brincadeira, talvez não, quer me desenhar depois?
VIOLETA: Hum-hum.
AURÉLIO: Aí a gente, ou melhor, eu janto, bebo um pouco e aparentemente ameaço pegar no sono.
VIOLETA: Aparentemente?
AURÉLIO: É. Digamos que eu quisesse ver como você reagiria caso eu ameaçasse dormir.
VIOLETA: O.k.
AURÉLIO: Aí, como quem não quer nada, você pergunta se meus pais vão demorar. Sim, eles não podem estar aqui pra você pôr seu plano em prática. Aí você diz, vai, levanta, não quero passar a noite aqui nesse apartamentão conversando com as paredes.
VIOLETA: Certo.
AURÉLIO: Bom, acho que os dados estão todos aí. Quer se pronunciar?
Blackout.
Quando o palco volta a ser aceso vemos Aurélio e Violeta deitados, nus. A roupa de Aurélio está jogada pelo chão e a de Violeta está organizadamente disposta sobre uma mesa. As duas camisinhas usadas por Aurélio estão amarradas e penduradas no criado-mudo. As notas de cinquenta reais que Violeta recebeu pelo programa estão dentro de sua bolsa. Sim, Aurélio interpretou corretamente as ações e palavras insinuantes de Violeta: além de baby sitter e modelo vivo, ela também trabalha como prestadora de serviços sexuais.
AURÉLIO: Posso te fazer uma pergunta?
VIOLETA: Pode.
AURÉLIO: Você, que é uma moça experiente e tal, baseada na sua experiência, você acha que essa nossa transa aqui foi minha primeira vez?
VIOLETA: Hum. É, acho que sim. Acertei?
AURÉLIO: Mais ou menos.
VIOLETA: Mais ou menos como?
AURÉLIO: Então, escuta só a história que eu vou te contar. Escuta e analisa, pode ser?
VIOLETA: Claro.
AURÉLIO: O.k. Então, uma época teve uma garota que morou aqui no prédio. Ela tinha uns dezenove, vinte anos. Ela gostava de mim e me dizia coisas como, você já é lindo com doze anos, imagina só daqui a uns seis, sete, vai fazer um estrago só com a mulherada.
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: Ela também às vezes pedia para eu amarrar a parte de cima do biquíni dela, ela dizia que não tinha amarrado direito, que estava frouxo. Imagina só. Sempre que isso acontecia eu tinha que imediatamente pular na piscina pra esconder meu estado. Ela era bonita, altona, tinha uns peitões tipo de mulher americana.
VIOLETA: Hum-hum.
AURÉLIO: Um dia ela me convidou pra ir ao apartamento dela jogar xadrez. E é claro que eu fui. Ela abriu uma garrafa de vinho e ficamos lá, jogando. Venci as duas primeiras partidas. Então ela, que tinha bebido toda a garrafa, me propôs o seguinte: se eu vencesse a próxima partida, ela faria sexo comigo. E se eu não vencesse ela me daria um prêmio de consolação que eu ia achar legal também.
VIOLETA: Hum.
AURÉLIO: Então começamos a terceira partida. E ela se mostrou uma jogadora implacável, ficou claro que ela havia perdido as duas partidas anteriores de propósito. Em onze lances ela me deu xeque-mate.
VIOLETA: Ó, que peninha. E que vaca essa mulher.
AURÉLIO: Pois é. Aí ela disse, como eu prometi, vou te dar o prêmio de consolação. Então ela pegou uma das peças do tabuleiro, levantou-se e disse, venha. Segui-a até o quarto. Lá ela se deitou na cama, tirou as calças e a calcinha e abriu as pernas. Aí ela me estendeu a peça de xadrez, o rei, e disse, pode me penetrar com isso.
VIOLETA: E você?
AURÉLIO: Eu fiz o que ela pediu. Eu nunca tinha visto ao vivo uma genitália feminina. Então, quando eu terminei de penetrar o rei em seu canal vaginal, sei lá, a excitação e agitação que eu estava sentindo, eu sei que eu acabei ejaculando. Gozei vestido mesmo, minha calça ficou toda molhada, como se eu tivesse feito xixi nela.
VIOLETA: Hum-hum.
AURÉLIO: Depois disso tudo eu passei a viver com a dúvida: posso me considerar virgem ainda? Afinal, eu tinha penetrado uma mulher, ainda que com uma peça de xadrez, e tinha gozado e tudo, ainda que dentro das minhas próprias calças.
VIOLETA: É. É bem ambígua essa situação aí. Sei lá. Que sensação prevaleceu pra você?
AURÉLIO: Como assim, sensação?
VIOLETA: Que sensação prevaleceu depois de você penetrar uma mulher com uma peça de xadrez, a sensação que você havia deixado de ser virgem ou que continuava virgem?
AURÉLIO: Que eu continuava virgem. Mas então eu raciocinava um pouco e concluía que, de certo modo, eu não era mais exatamente virgem.
VIOLETA: Hum. É. Vai saber.
Violeta se levanta e começa a se vestir. Aurélio faz o mesmo.
AURÉLIO (colocando a camiseta): Posso te perguntar mais uma coisa?
VIOLETA: Pode.
AURÉLIO: Como é que aquele problema do faca está pra revólver assim como garfo está pra se completa?
VIOLETA (rindo): Aquilo lá não se completa.
AURÉLIO: Não?
VIOLETA: O problema não tem solução. Foi blefe meu.
Aurélio ri.
AURÉLIO: É, gostei.
VIOLETA: Gostou? Gostou do quê?
AURÉLIO: Gostei que você abriu o jogo. Você deve ser uma garota legal. Uma garota que assume que blefa quando blefa só pode ser uma garota legal.
VIOLETA: Hum-hum.
AURÉLIO: As mulheres em geral não são tão legais assim.
VIOLETA: Pode crer. Não são mesmo.
Blackout, pano cai.
Hoje vou tocar o Concerto para Violino, de Alban Berg,
O concerto será no teatro municipal e o regente convidado é um norueguês, um figurão importante da regência.
Como acordei indisposto, antes de ir pro teatro dou uma esticada até a zona norte. Estaciono meu carro, alugo um carro velho e dirijo até onde os espectadores já estão aglomerados.
Espero um dos pilotos terminar sua exibição enquanto analiso a extensão e o traçado da pista, que é uma via pública razoavelmente plana, com piso de paralelepípedo.
Acelero até cinquenta por hora, então giro o volante ao mesmo tempo em que puxo o freio de mão. Os pneus, carecas, ajudam as rodas de trás a perderem a aderência. O carro rodopia, emitindo um ruído gritado como de um animal agonizante.
Não sou muito aplaudido, minha manobra não ficou mesmo muito boa.
No segundo cavalo de pau uso mais torque e giro o volante de modo mais brusco, então o carro rodopia duas vezes e quase atropela um grupo de pessoas parado em frente a um posto de gasolina.
As pessoas pulam, eufóricas, e me saúdam com aêêês. Eu saúdo elas de volta jogando a rotação do motor em sete mil giros e fritando os pneus dianteiros.
Dou mais três cavalos de pau, até que um dos pneus desse carro decrépito que estou usando é ejetado da roda. O público ri e eu rio também, isso, seus malditos, riam, riam bastante, qualquer dia ainda faço um strike de boliche com vocês.
Devolvo o carro ao sujeito que aluga carros para os praticantes de drift, modalidade automobilística chamada de pega aqui no subúrbio, entro meu carro e tomo o caminho para o Centro.
Furo dois sinais vermelhos antes de chegar ao túnel.
Estou encharcado de noradrenalina. Meu coração está acelerado e estou tão alerta que consigo perceber até meus cílios e meus sentidos estão tão aguçados que consigo sentir cada nervo, cada músculo, cada tendão, e minha mente está tão lúcida que se fecho os olhos consigo visualizar todas as notas que estão, por exemplo, no compasso cento e doze da partitura do Alban Berg.
Minha perfórmance hoje no violino será absolutamente fora do comum.
Não me interesso por nada que essa mulher que está comigo, agora, aqui no meu apartamento, diz. Ela está dizendo uma frase que tem a palavra desambiguação. Não sei por que me detenho nessa palavra, desambiguação. Talvez pelo modo como as vogais e as consoantes escoam pela voz dessa mulher, que tem uma beleza fria e um odor neutro e um corpo que, embora seja disciplinado pela ginástica, no fundo é medíocre – uma mulher com quem mantenho relação apenas por saber que nunca irei me apaixonar por ela e também porque tudo o que ela diz é esquecível (sua presença também é esquecível), e também porque ela é uma pessoa bem educada que muito provavelmente nunca vai me causar nenhum transtorno ou me fazer passar por um vexame. Quando faço sexo com ela não sinto nenhum tipo de arrebatamento – sinto-me executando uma função fisiológica, uma daquelas funções fisiológicas que envolvem esforço e alívio. Sim, depois que ela vai embora e eu tomo banho e me deito, sinto-me como se um punhado de toxinas tivessem sido eliminadas do meu sangue. Durmo bem, com a cabeça vazia, e meu sono costuma ser uma daquelas telas escuras, sem sonhos.
Falei em vexame e transtorno e pensar nisso me leva imediatamente à mulher-encrenca, com quem eu poderia eventualmente me encontrar – beleza estranha, um cheiro muito bom, geralmente subliminar, um cheiro que lembra cloro, não aquele cheiro residual que as nadadoras têm, mas um odor intrínseco –; contudo, a mulher-encrenca é reivindicadora e tem tendências obsessivas; é dada a episódios de “mediunidade”; bebe muito. O que é uma pena, pois o sexo com ela sempre foi muito excitante, a mulher-encrenca é uma dessas raras mulheres que de fato têm talento para a cópula e ações correlatas (chupar, dar o cu, etc.).
O lugar da mulher-encrenca acabou sendo ocupado por uma mulher cuja principal qualidade talvez seja o bom temperamento, uma mulher que eu posso chamar de a-mulher-que-faz-eu-me-sentir-um-homem-bom. Recebo-a eventualmente aqui. Ela tem um rosto bonito, mas no qual aparece muitas vezes uma expressão tola, idiota mesmo, que sempre acho extremamente desestimulante. Seu corpo é normal – peitos um pouco acima do normal – e seu cheiro intrínseco eventualmente tem qualquer coisa que me é aversiva, um cheiro que lembra perfume oxidado (o que é estranho, pois ela normalmente não usa perfume). Ela é a mulher com a pior situação financeira com quem tenho algum envolvimento, daí que a ajudo com frequência, saldo débitos, pago condomínios atrasados, etc. Eventualmente faço alguma grosseria com ela, para ela não me idealizar demais, não achar que sou um homem perfeitamente bom. Quase sempre escolho falar de outras mulheres, comparando-a desfavoravelmente. (Intimamente me arrependo dessas humilhações a que a submeto. Ela é uma pessoa boa, tem um bom coração, não merece ser maltratada. Ou: boa pessoa coisa nenhuma, é uma sem vergonha interesseira que só mantém a fala mansa comigo porque sabe que não tem cacife pra falar grosso. Qualquer dia lhe dou uma botinada definitiva.)
Mulheres: tem também a aparição ou mulher-com-forte-sensibilidade-tátil, que surge a cada dois ou três meses e logo desaparece. Das minhas mulheres, é a única por quem já fui apaixonado e talvez ainda seja (e talvez sempre serei). E talvez por isso falar sobre ela sempre seja um desafio – seu cheiro na verdade são vários: do rosto, da nuca, dos braços, do espaço entre os dedos dos pés, do sexo, das raízes capilares, da respiração, um cheiro que permanece em mim por dias depois de nossos encontros e que me causa uma dependência desesperadora e, de certo modo, infantilizante – sim, admito que tenho vontade de chorar quando, ainda possuído por suas-minhas fragrâncias, pressinto seus afastamentos, suas desaparições. Consolo-me da catástrofe que sempre experimento com a impossibilidade de permanência da mulher-com-forte-sensibilidade-tátil, que também pode ser chamada de mulher-com-o-rosto-mais-lindo-que-já-vi, que também pode ser chamada de mulher-logos (tínhamos no começo de nossa relação conversas que duravam sete, oito horas), que também pode ser chamada de mulher-sem-a-qual-minha-vida-não-tem-nenhum-sentido-verdadeiro-e-profundo, consolo-me da horrível catástrofe que sempre experimento com a impossibilidade da permanência dela em minha vida servindo-me da mulher-esportista; a esportista é uma mulher saudável, longilínea, uma mulher com os traços do rosto francos e arrogantes (gosto não de mulheres com a expressão facial insolente, agressiva ou debochada, mas, sim, de mulheres com um ar verdadeiramente arrogante, arrogância geralmente enraizada numa soberania, soberania geralmente enraizada numa noção verdadeira da própria superioridade, uma superioridade eugênica, quase soviética, quase nazifascista, eu diria). A mulher-atleta tem os cabelos lisos e volumosos e é atraentemente nariguda. É dada a jogos com regras claras. É, resumidamente, uma simplificadora do real. O problema é que o efeito dela sobre mim é curto e sua presença só funciona quando faz contraste com alguma recente desaparição da mulher-que-me-dá-vontade-de-chorar-quando-vai-embora (um outro nome possível para a mulher-absoluta, a mulher dos cheiros múltiplos que também são meus). Um detalhe sórdido sobre a mulher-atleta, que íntima e inconfessadamente contabilizo a seu favor: ela é estéril, com menos de trinta anos teve de fazer uma histerectomia radical. Quando sinto a tentação de avaliá-la depreciativamente e de, talvez, descartá-la, penso que a mulher-atleta é a única mulher que posso despreocupadamente foder sem camisinha. (Em contraste, a mulher-que-me-dá-vontade-de-chorar-quando-ameaça-desaparecer é preocupantemente fértil, sei que é, nossas fantasias eróticas muitas vezes envolvem fecundação e isso quase sempre é uma pista da realidade biológica de um casal; daí que o sexo com ela, que também pode ser chamada de mulher-da-minha-vida-e-da-minha-vida-eterna-se-houver-uma, é um sexo sempre rigorosamente disciplinado, ao menos o sexo genital.)
Um detalhe curioso sobre a atleta, a nariguda gostosa, a arrogante, a simplificadora do real: não tenho registro olfativo dela.
Há ainda outras: aquela garçonete-peituda com sotaque nordestino (corrijo: com uma prosódia horrorosa de cantora de forró); aquela mulher-intrinsecamente-deselegante de quem eu até gosto (gosto como gosto de nuggets com molho barbecue do McDonald’s), mas com quem eu odiaria ser visto em público; aquela que é maconheira demais e que usa camisetas estampadas com trocadilhos do tipo Sou Frida, mas não me Khalo; aquela que é maconheira também, mas que acha que é de direita (sugeri uma vez que ela fizesse uma camiseta verde e amarela com a frase maconheira de direita); aquela ex-beldade que acabou de fazer cinquenta e sete anos e, não só por isso, mas por isso também, está ficando insuportavelmente amarga, dada a ideações suicidas, etc.; aquela que entope a rede social com fotos dela fazendo dança do ventre; aquela cuja linguagem é eivada de palavras horrorosas como níver, facul, miga, miguxa, sofrência, Sampa, e de clichês medonhos como eu gosto de viajar para conhecer novas culturas, se não for para me fazer voar não tire meus pés do chão, etc.; essas, porém, habitam uma espécie de vala comum na minha topografia afetiva.
Não me interesso por nada que essa mulher que está comigo, agora, aqui no meu apartamento, diz. Ela está dizendo uma frase que tem a palavra desambiguação. Não sei por que me detenho nessa palavra, desambiguação. Talvez pelo modo como as vogais e as consoantes escoam pela voz dessa mulher, que tem uma beleza fria e um odor neutro e um corpo que, embora seja disciplinado pela ginástica, no fundo é medíocre – uma mulher com quem fazer sexo, para mim, é apenas exercer uma função fisiológica baseada em esforço e alívio, algo que me dá um efeito levemente desintoxicante e esvaziador. Talvez por isso, e por algumas outras coisas, coisas oriundas de cálculos e raciocínios tão mesquinhos que não merecem ser mencionados (não se trata de dinheiro, por sorte nasci numa família com excelente situação material), talvez por isso tudo eu tenha decidido me casar com ela. Casamento, assim como nascimento, assim como doença, assim como morte, assim como o formato das sobrancelhas que você tem, assim como os filhos que você porventura gere, pertence ao reino da fatalidade e da arbitrariedade cósmica, não da escolha deliberada e consciente; percebi que deveria me casar com ela como alguém que toma consciência de que tem um câncer incurável; há algo de “bom” nessa minha “escolha” por ela: acho-a tão insignificante que nosso casamento provavelmente nunca vai degenerar em ódio; não tenho como me decepcionar com uma pessoa de quem nada espero; ela é bonita (beleza fria), tem uma boa tonicidade muscular (apesar do corpo fundamentalmente medíocre), é “inteligente” (poliglota, excelente desempenho acadêmico, etc.), então é razoavelmente provável que iremos gerar filhos bonitos, sem tendência à obesidade ou à calvície (nem ela nem eu temos carecas em nossas genealogias) – sim, iremos gerar um bando de idiotinhas superinteligentes que aos vinte anos estarão fazendo administração no Insper e que logo entrarão na Unilever como trainees e que serão superfelizes e que antes dos trinta anos já estarão recebendo salários astronômicos e que terão uma ampla vivência internacional e que se casarão com garotas igualmente idiotinhas e superinteligentes e que no futuro me darão netinhos provavelmente idiotinhas e provavelmente superinteligentes também. (Há, há.) Ela, que acabou de dizer a frase da qual destaquei a palavra desambiguação, está bastante feliz com a perspectiva do casamento. Eu, curiosamente, também estou feliz, muito feliz. Logo, minhas únicas esperanças daqui pra frente estão na infelicidade, no tormento, na incerteza, no caos moral, na imensa provisão de catástrofes de que disponho ao me relacionar com as outras, todas as outras. A única certeza que tenho sobre mim é que as outras sempre existirão. Sempre.
extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)