Miroslav está deitado, esperando a anestesia do dentista passar. Entorpecimentos localizados desse tipo sempre o fazem se sentir absolutamente incapacitado. O dia, quarta-feira, está seco e radiante. Um barulho de furadeira vem de algum apartamento não muito acima do dele. Esse tipo de ruído nunca o incomodou, ao contrário de ruídos percutidos e intermitentes. Seu telefone, que está sobre um antigo latão de gasolina transformado em criado-mudo, emite o sinal sonoro de que chegou mensagem. É Mariana, que diz que é pra ele pegá-la em casa às vinte e trinta. Embora saiba que Miroslav tem fobia de hospital, Mariana decidiu arrastá-lo à UTI onde seu marido está em coma induzido. Ela diz que quer se vingar de uma série de humilhações conjugais, beijando Miroslav na frente do sujeito, ainda que com ele em coma.
Miroslav se levanta e fica parado, apalpando a parte anestesiada do rosto. A sala de seu apartamento não tem nas paredes qualquer imagem, quadro, pôster, etc., exceto a palavra przyjemnosc, escrita a lápis em letra minúscula perto do batente da porta principal. Essa palavra significa volúpia na língua nativa de seus pais, o polonês. Também não há livros físicos ali, tendo Miroslav no começo do mês depositado na caçamba de lixo reciclável do prédio os últimos cento e poucos volumes que ainda guardava. Ele caminha ao banheiro e abre o nécessaire. Avalia que sobraram poucos comprimidos de naproxeno sódico, calça-se e vai à farmácia comprar. Sobe a Conselheiro Brotero e, como sempre, conta até a janela do sétimo andar de um prédio cuja fachada é feita de pastilhas azuis e brancas. Engole a seco após fazer essa contagem. Pensa em Mariana, seios, dorso, torso, o efeito opioide que sente ao mergulhar o rosto em seus cabelos e inalar o odor resinado que sempre existe ali. Ao pedido que ela lhe fez, para acompanhá-la à UTI e beijá-la na frente do marido, Miroslav podia ter dito simplesmente que sim ou que não. Mas ele pressentiu que o alvo real daquela encenação não era o marido, pressentiu que Mariana queria ser vista sendo beijada, por certo por alguém da equipe médica, pressentiu que seu objetivo era atrair ou afastar algum pretendente amoroso, já que aquela encenação servia para as duas coisas, “afaste-se, já tenho meu homem”, “ei, que tal vir aqui brigar por mim, saindo no braço com esse sujeito que está me beijando?”. Depois, foi só Miroslav fazer uma breve e simples investigação, etc. Em se tratando de discernir os motivos por trás dos atos de uma mulher, apostar no motivo mais trivial será sempre a aposta certa.
Miroslav entra em casa, vai ao banheiro e guarda o naproxeno no nécessaire. Volta à sala, pega o telefone e digita à Mariana uma mensagem que contém um simples nome próprio, duas palavras que, ele sabe, terão amplo poder de desconcertá-la. Desliga o telefone, coloca-o sobre o latão criado-mudo e deita-se no sofá. Lembra-se, então, de que trancou à chave a porta da rua. Levanta-se, destranca a porta e volta a se deitar. Dentro de no máximo duas horas o efeito do anestésico terá passado totalmente. A porta da rua está aberta e ele sabe – sabe – que ela virá, e atravessará o portal da volúpia – volúpia, ainda que oblíqua e espalhada pelos poucos caracteres de um idioma que, talvez, não seja o idioma real nem dela, nem dele.
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