sábado, 5 de dezembro de 2020

CINDERELA, Eduardo Haak

Vai ficar hematoma, o assassino deduz, tentando ignorar as fezes espalhadas no lençol.

Observa de novo, agora mais de perto, a marca de dentes (sim, dentes) que fez na nádega esquerda da morta, logo abaixo da tatuagem. A tatuagem é uma frase em latim, non plus ultra, que significa aquilo que não pode ser excedido.

A vontade de fugir – sempre se sentiu oprimido por cadáveres – é obstruída pela necessidade de analisar se não está deixando rastros.

Porém, os ruídos do flat, da noite, dos próprios ouvidos, ampliados pela vertigem e pelo pânico que está começando a sentir, lhe turvam o pensamento. Caminha até a porta, observa o corredor e sai.


Procópio acorda e se arrasta de quatro até o banheiro. Lava o rosto e se deita no chão, já que o frio do piso de cerâmica atenua sua sensação de enjoo. 

A língua, sem a barreira de dentes postiços, parece solta na cavidade bucal.

Consumir carbolítio fez Procópio perder todos os dentes antes dos cinquenta anos. Ter voltado a beber também vêm contribuindo para a devastação de sua saúde, problemas hepáticos, gastrite, amnésia alcoólica.

Com esforço recompõe a noite passada. A garota no flat, estilo é mas não parece ser. Qual sua profissão? Sou atriz. Instrumentadora cirúrgica. Faço programa porque gosto. Cindy, 20 a., pés lindos, etc. 

Procópio se levanta e tira de uma frasqueira que estava debaixo da pia duas caixas de medicamentos. Ingere um antiemético e dois antidistônicos. Toma banho, veste-se e começa a procurar a dentadura. Não a encontra em lugar nenhum, então se lembra de onde a esqueceu, foi no flat da garota de programa, sim, a imagem da prótese dentária, largada lá, espoca em sua mente como um sinalizador naval, puf.

Procópio vai até a sala e senta-se numa poltrona. Fica refletindo, tentando dar alguma ordem a seus pensamentos. Nada daquilo era necessário, pensa, começando a sentir horror de si mesmo.


O pontilhado escarlatiniforme de Lacassagne, a congestão ocular, o osso hioide partido, a emissão involuntária de fezes e urina apontam para morte por esganadura, ou constrição cervical. A vítima, Cinderela Gonçalves, vinte e oito anos, profissão declarada de modelo, tem também uma marca de mordedura na região lombar. Foi encontrada na cena do crime uma prótese dentária, arcada superior, que não pertence à vítima.

O comissário de polícia Walter, sentado no vaso sanitário, ouve mais uma vez sua própria voz gravada e desliga o aparelho.

Quando usa esses termos, Lacassagne, hioide, sempre se lembra de Camila, sua professora de medicina legal na faculdade, depois namorada e noiva por um curto período. Foi Camila quem o ensinou a não desprezar nenhuma conjectura – você está amando outra, não está? –, especialmente as conjecturas óbvias: cliente esgana garota de programa e na fuga acaba perdendo a prótese dentária. Etc.

Walter dá descarga e se lava no bidê.

O flat onde a garota morava e foi assassinada não registra a entrada de visitantes e analisar imagens de câmeras é uma aporrinhação, ele pensa, enquanto lava as mãos; depois, as esfrega com álcool gel. Olha-se no espelho e diz, amerykanski filmowy horror, que quer dizer filme de terror americano em polonês. Dizer essa frase em polonês é um cacoete recente do qual Walter não está conseguindo se livrar. Volta à sala, onde Gigliola o espera. Walter e ela são namorados e hoje irão conhecer um bar novo.

Gigliola talvez seja a mulher mais bonita que Walter já conheceu.

Ela tem uma beleza clássica (perfeita articulação dos músculos faciais, auriculares, zigomáticos, nasais) e, ao mesmo, tempo sua beleza é idiossincrática, como ela se fosse a filha linda de uma mãe expressivamente feia, e se parecesse muito com a mãe, de alguma forma. 

No carro, a caminho do bar, Gigliola vasculha o rádio, acaba desligando e pede que Walter lhe conte uma história. Embora os dois como casal já tenham passado da euforia dos inícios (acordar tarde num primeiro dia de férias, mudar para um apartamento novo e desejado, viajar pela primeira vez para o exterior), a convivência entre eles ainda é harmoniosa.

Que história?, Walter pergunta.

Qualquer uma. Eu gosto de ouvir sua voz. 

O.k. Era uma vez um reino encantado. Posso começar assim?

Pode.

Tá. Era uma vez um reino encantado. E havia nesse reino um castelo no qual morava uma princesa chamada Cinderela.

Hum.

Cinderela tinha chegado à idade de casar e fez um baile para o qual todos os rapazes do reino foram convidados. Se gostasse de algum, casaria com ele.

Hum-hum.

Já perto da meia-noite, Cinderela enfim encontra um rapaz por quem se apaixona. Mas o sino começa a tocar e o rapaz, sem explicar por que, sai correndo. Ele corre tão depressa, mas tão depressa, que até deixa cair sua dentadura na escadaria do castelo.

Gigliola ri.

No dia seguinte, a princesa convoca todos os rapazes do reino, e aquele em quem a dentadura servir será seu príncipe encantado.

E desdentado. Você é maluco. De onde você tira essas ideias?

Da minha cabeça. Eu sou maluco, você mesma disse.

Não duvido.

Não duvide.

O telefone toca, é o Argemiro, da perícia. Walter atende. 

Walterney, tenho uma informação que você vai amar, diz Argemiro.

Walter, que detesta ser chamado pelo nome com que foi registrado na certidão de nascimento, diz, manda.

É sobre aquela garota que foi morta no flat.

O.k.

A tal dentadura bate mesmo com a mordida que a mulher tinha no traseiro.

Hum. Só isso?

Não, não. A dentadura, pelo tamanho da arcada e outras características, pertence a um anão.

Anão? Tem certeza disso?

Absoluta.

O.k, Miro. Depois te pago um chá de carqueja.

Walter e Gigliola chegam ao lugar, um bar que imita aqueles dives de Chicago frequentados pelos gângsteres. Walter se senta num sofá, enquanto Gigliola vai ao banheiro. Logo acima do sofá há uma sequência de lâmpadas de baixa intensidade e um painel de néon amarelo onde se lê, grandes tempos estão chegando.

Sentada na outra ponta do sofá está uma garota, de pernas cruzadas, guardiã do próprio limiar contra homens indecisos e fracos. 

Walter observa outras duas garotas que jogam sinuca. Se estivesse só, abordaria a garota de blusa verde.

Pega o telefone e relê seu histórico de conversação com Judith. 

Desde aquilo tudo que aconteceu, os tiros, etc., Walter nunca mais tinha se envolvido com duas mulheres ao mesmo tempo. Mas outro dia viu Judith na TV, falando sobre um projeto de formação de bailarinas em comunidades carentes. Achou-a bem. Sentiu vontade de mandar uma mensagem para ela.

Walter pensa no que o Miro da perícia falou, que a dentadura achada na cena do crime pertence a um anão. A garota morta, Cinderela, tinha 1m83 e fazia ginástica. Com um peteleco atiraria um anão longe. 

Ou não?

Não desprezar nenhuma conjectura, especialmente as conjecturas óbvias.

Etc.


A dentadura nova ainda não ficou pronta e para esconder a boca desdentada Procópio vem usando uma máscara cirúrgica, daquelas que as pessoas usam em Tóquio, não transmitirás vírus através de perdigotos, não espirrarás no vagão do metrô com a face descoberta.

Ele está agora na igreja, esperando a vez de se confessar.

Desde jovem observa que naquela igreja os vitrais que mostram figuras masculinas, Pedro, João Batista, são emoldurados por formas retangulares e as figuras femininas, Madalena, Maria, são cercadas por formas ogivais, imagens que lembram – Procópio não consegue evitar a palavra – bocetas.

Odiar o pecado, não o pecador. Procópio, porém, odeia seus pecados e odeia a si mesmo.

Deus o fez tosco e deformado – portador de nanismo – para evitar a tentação, mas o diabo o fez lascivo.

A luxúria é a porta que leva a todos outros pecados, a todas as violações da lei de Deus, não roubar, não cobiçar, não matar.

Termina de rezar o credo em latim, et exspecto resurrectionem mortuorum, et vitam venturi saeculi, Amen, e pensa, meu arrependimento é sincero? 

O Pai Onipotente, em sua infinita misericórdia, me concederá perdão?


Hoje o dia de trabalho de Walter foi especialmente conturbado. Logo de manhã chegou à delegacia um caso de lesão corporal seguida de morte, um marido que espancou a mulher alegando que ela o havia traído com um dos periquitos australianos que ele criava num viveiro, um macho anilhado, fator Spangle Melânico, plumagem azul, trinta e sete gramas de peso. A mulher, segundo ele, introduziu-o intra vas. Como a temperatura do periquito australiano oscila ao redor de quarenta e dois graus e sua frequência cardíaca varia entre duzentos e cinquenta e quinhentos e cinquenta batimentos por minuto, quando inserido numa camisinha o periquito se transforma num instrumento fálico com um dinamismo peculiar, em parte semelhante ao dos vibradores, em parte semelhante ao de um falus humano.

Depois chegaram ao distrito um caso de atropelamento, um desabamento, uma rixa seguida de lesão corporal de natureza grave (não seguida morte), dois elementos detidos para averiguação, algumas assinaturas de termos circunstanciados por posse de entorpecentes. 

Também houve o depoimento de dois funcionários do flat onde morava a Cinderela Gonçalves, a prostituta que foi estrangulada (mordida de anão no traseiro, non plus ultra, etc.). Os depoimentos pouco esclareceram o caso. Não, senhor, nunca soube que ela fazia essas coisas. Isso, programa. Não, nenhum movimento anormal. Bom, isso é difícil de dizer, o prédio vive com gente nova, gente que vai morar lá e às vezes fica pouco tempo. Sim, eu soube desse sujeito, o tal anão, mas não era eu que estava na portaria quando ele deu entrada no prédio. Também, quando ele saiu não era eu que estava lá.

Que música é esse que você colocou?, Gigliola pergunta, deitada na cama, membros esticados, braços cruzados sob a nuca. 

Walter responde que é um disco da Flora Purim. 

Gigliola não a conhece e Walter conta sua história, diz que ela é uma cantora de jazz brasileira radicada nos Estados Unidos desde a década de 1960. 

Walter não diz que Flora Purim cantando essa música, Crystal Silence, sempre lhe provoca uma ereção, porém tira as calças e a mostra.

Gigliola sobe em Walter e ele fecha os olhos e lhe vem à mente uma imagem que ele não sabe se é uma harpa ou a mandíbula de uma baleia pré-histórica, e enquanto ele fode Gigliola ele pensa, toda boceta é autoritária, sim, toda boceta diz, submeta-se!, faça-me gozar!, goze dentro!, goze fora!, chupe-me!, engravide-me!, já os seios têm outro tipo de dinamismo, os seios sempre fazem Walter pensar no prazer-estupor que sentia quando era criança e se deitava em pilhas de tapetes em lojas de tapetes persas-iranianos e se abandonava na cama elástica que havia na escola, sempre que a quadra estava vazia, cama da qual sentia uma espécie de ciúme-otelo-desdêmona, um desejo de posse não compartilhada, sim, o momento em que Walter sabe-se mais íntimo de si mesmo é quando sente o cheiro de sua saliva no seio de uma dessas mulheres com nomes incomuns, nomes como Gigliola, seu próprio cheiro modificado alquimicamente por esse contato, algo que o faz se sentir potencializado, sim-exato, seios, bocetas, o triângulo invertido da pélvis cujo vértice inferior aponta para deslizamentos e sonhos indevassáveis e ciclos e a salinidade que se sente na boca, vas alquímico, espaço escorreito escorregadio, ferruginoso, fonte de urina, caldeira, aquecedor central, vitral cercado pelo silêncio das coisas que ruíram, mulher feia e nodosa que aguarda papéis rabiscados pelo doutor para comprar substâncias que prometem tirá-la do estado de morbidez mental e que diz, para estimular o próprio riso, que o filho quando era pequeno dava tchau para as fezes antes de tocar a descarga, círculo, rosácea, mandala, centro, irradiação, self, mucosa, textura, corrimento, elasticidade, o ruído de baixa frequência da geladeira, artérias de néon sendo desligadas pouco antes de a noite terminar, pode gozar dentro, acabei de ficar menstruada, Gigliola diz, e Walter começa a ejacular e diz, Schoenberg , o sch distendido, um carro que freia na rua gritando-fritando pneu, Schoenberg, Schönberg, Arnold Schönberg, schhhh-hhhh.

Você se ainda se lembra qual foi a primeira coisa que você notou em mim?, Gigliola pergunta, de olhos fechados.

A primeira coisa que notei foi que você estava decepcionada com aquela festa, diz Walter. 

Hum. Essa observação sua não é muito perspicaz, todo mundo estava aborrecido naquela festa.

Sim, a festa estava ruim. Mas a expressão de decepção de seu rosto era diferente da dos outros convidados. As pessoas quando se aborrecem parece que logo perdem o prumo, ficam amarrotadas. Amarrotadas e reivindicativas. Aí saem por aí quebrando tudo e botando fogo em ônibus.

Você e sua implicância com as hordas, Gigliola diz, rindo.

Exato. Reparei logo que você era o tipo de pessoa que, por exemplo, jamais aderiria a um movimento de massas.

Só porque eu não fiquei, como você disse, amarrotada por causa de uma festa tediosa?

Sim. Achei fascinante esse indício de incorruptibilidade seu.

Hum.

Agora é sua vez. Qual foi a primeira coisa que você notou em mim?

A primeira coisa que notei em você. Que você era alto.

Só?

Que você era feio, e que estava me olhando.

Hum.

E que você não havia afrouxado a gravata, nem estava suarento, como os outros homens, essa horda de porcalhões.

Olha só. Os semelhantes se atraem? Dois seres incorruptíveis?

Não. Você estava quase, quase prestes a perder o prumo. Quando você se sentou naquela mesinha perto do palco, estava sacudindo a perna insistentemente. Uma coisa medonha.

Gigliola enumera várias coisas que notou em Walter, que ele estava bebendo água como quem finge estar bebendo álcool e que, além de olhar para ela, Walter também estava paquerando uma loira balofa e brega fantasiada de Madonna anos oitenta.


Walter está indo ao IML. 

Enquanto dirige ele pensa, voltar a ver a Judith depois de quase vinte anos não é repetir a história como farsa? Sempre que sente saudade de uma ex acaba empacado nesse dilema, o que foi mas que não é mais, o que foi mas que ainda pode ser, etc.

Chega ao prédio e vai à sala de necropsia.

Um homem portador de nanismo (v. nelson ned, um show de noventa centímetros) foi encontrado morto num quarto de motel e as evidências apontam para suicídio.

“Ah, não” é um homem pequeno. Setembro chove? Etc.

A dentadura, que ele pegou emprestada com o Miro da perícia, está no bolso esquerdo de sua jaqueta.

O funcionário do necrotério tira o lençol que cobre o cadáver, cujo rosto parece uma porção caótica de nhoque ao sugo, remexida e abandonada no prato.

O tiro na abóbada palatina, dependendo do calibre da arma, pode fazer a cabeça explodir.

Nada sobrou intacto, gengiva, músculos, ossos.

A dentadura, portanto, não pode ser testada. (Cinderela pisa em mina terrestre e tem o pé despedaçado, o príncipe não tem como saber se o sapato de cristal lhe serve.)

Walter sai da sala de necropsia e transita pelo prédio, que conhece bem. Sobe ao segundo andar e para em frente a uma porta. Era ali naquela sala que Camila (você está amando outra?, etc.) trabalhava na época em que eles começaram a namorar. 

Isso foi há dezenove anos. Aqueles outros eventos, aquilo tudo, Judith, etc., aconteceu alguns anos depois. Até hoje ele pensa, eu podia ter atirado em algum lugar que desse a Camila alguma chance de sobreviver. Mas escolhi não fazer isso.


Camila perguntou, você não tem medo de mim?, quando percebeu que Walter, seu aluno na faculdade, estava interessado por ela. Lecionar Medicina Legal sempre pareceu criar uma barreira supersticiosa entre ela, uma bonita mulher de trinta e oito anos, e os homens.

Nenhum de seus colegas de trabalho jamais tentou seduzi-la. Talvez fosse melhor assim. Talvez não fosse ético se envolver com colegas. Ou, talvez menos ético ainda, se envolver com alunos.

Por que eu deveria ter medo de você?, Walter lhe respondeu-perguntou.

Camila ouviu a pergunta e pensou nas próprias instabilidades e inseguranças. O ex-noivo, que desmanchou o casamento com o bolo da festa já encomendado. A irmã, não tão bonita quanto ela, mas muito mais bem sucedida, profissionalmente, sexualmente, etc. O fato de Walter ser quinze anos mais novo. E de ser seu aluno. Formaldeído é um aldeído simples, de fórmula molecular H₂CO. Sua solução aquosa, diluída a 45%, denomina-se formol. 

Sim, me diga, por que que eu deveria ter medo de você?, Walter insistiu na pergunta.

Porque eu vejo pessoas mortas o tempo todo, como aquele garotinho do filme?, Camila respondeu, soltando um riso tenso.

Às vezes Camila se olhava no espelho tentando descobrir o que havia de errado consigo.

Não era algo que estava em seus traços.

Inclusive as pessoas lhe diziam, durante a residência médica, para que trabalhar tanto?, com esse rosto e esse corpo que você tem, por que não vai ser modelo? Se não quer ser modelo, por que não arranja um marido rico?

Sim, ela era bonita, seu problema não era esse. Qual era, então?

Acabou aceitando namorar Walter e, aos poucos, se convenceu de que estava sendo amada por ele.

Foi feliz por quase três anos.

Quando ele propôs que ficassem noivos, Camila já sentiu que era um gesto compensatório.

O relacionamento dos dois não vinha funcionando, Walter demonstrava enfado em sua presença, mas queria declarar-se comprometido, fazendo uma encenação pública e oficiosa. Botar uma porra de uma aliança na mão direita dela.

Só rindo, mesmo.

Os homens têm a ideia de que tudo, tudo o que a mulher quer é casar, de que toda mulher é uma princesa encantada esperando que um príncipe de merda apareça e venha encaixar em seu pezinho a porra de um sapato de cristal. Filhos da puta.

As brigas entre eles se tornaram frequentes. Até que Camila descobriu que Walter estava envolvido com outra mulher, uma jovem da idade dele, uma bailarina chamada Judith, que Camila apelidou de aquela vagabunda dentuça. 

Não era apenas mais só uma conjectura: você está amando outra, não está?

Não, não é nada disso, Camila, nada disso, nada, você está entendendo mal.

A primeira coisa que Camila fez foi jogar a aliança de noivado na privada. Não satisfeita, urinou e defecou em cima dela para, só então, dar a descarga.

Um dia decidiu seguir Walter e a tal garota. Viu-os entrar numa sorveteria e sentarem-se.

Camila atravessou a rua, entrou na sorveteria, tirou da bolsa uma pistola com treze balas no pente e atirou na vagabunda dentuça. Depois, Camila atirou em Walter, uma, duas, três, quatro vezes. Walter, antes de perder os sentidos, sacou a própria arma e apontou para o peito de Camila, então mudou a pontaria para a cabeça dela e disparou.


Você conhece a piada da prostituta que fazia boquete e cantava ópera ao mesmo tempo?, o investigador Junqueira pergunta a Walter. 

Não, não conheço, Walter diz, despejando cola nas mãos e esfregando uma palma na outra, o que espalha a substância adesiva por elas de maneira uniforme.

Ele e Junqueira estão numa sala da delegacia que informalmente é chamada de Sala do Filé de Jararaca, que dizem ser assombrada pelo espírito de um velho delegado que trabalhou ali nos anos 1980.

Então, diz Junqueira, um sujeito estava andando na rua e viu a placa, faço boquete e canto ópera ao mesmo tempo. Aí ele tocou a campainha da casa e foi levado por uma recepcionista até um quarto totalmente escuro. 

Hum, Walter murmura, sacudindo as mãos para a cola secar.

Aí o sujeito ouviu uma voz feminina, deixe o dinheiro sobre o criado-mudo. O sujeito tirou a carteira e botou lá. Aí a mulher começou a cantar ópera e fazer um boquete sensacional nele. Quando acabou, ele saiu, mas aí se lembrou de que havia esquecido a carteira, então ele voltou, acendeu a luz do quarto e descobriu tudo. O que foi que ele descobriu?

Não sei. Não faço a menor ideia. 

Ele descobriu que a mulher usava olho de vidro e que ele tinha enfiado o pau em sua órbita ocular vazada. 

Junqueira, o rei das piadas ruins e dos trocadilhos imbecis, sai da sala.

A cola já secou. Walter rompe a película adesiva na borda de uma das mãos e a puxa, sentindo prazer com sua resistência. Observa as linhas que ficaram ali moldadas, linhas nas quais os quiromantes dizem estar escrito nosso destino. Faz o mesmo com a outra mão. Amassa os moldes e os joga fora. 

Um anão entra na sala. 

Ao ver o anão vem à cabeça de Walter a imagem do sujeito que se matou no motel, tiro na abóbada palatina, óbito em decorrência de traumatismo craniano causado por instrumento pérfuro-contuso. Porção de nhoque.

Boa noite, meu nome é Procópio Nazário Gutierrez, aqui está meu RG, vim aqui para confessar um crime.

E qual crime o senhor cometeu?, Walter pergunta, olhando o documento.

Homicídio, diz Procópio, tirando do bolso do casaco uma página de jornal, a polícia ainda não tem pistas, Cinderela Gonçalves, 28, que foi morta num flat na Alameda tal, segundo testemunhas, a linha de investigação, que está a cargo do comissário Walterney.

O.k., diga como foi, diz Walter.

Eu fui ao apartamento dessa, rameira, eu tenho problemas de saúde, mas minha capacidade, viril, está intacta, compreende?

Certo.

A rameira, a pécora, teve uma reação de, horror, ao pôr os belos olhos verdes em mim. Deve ter cogitado o pavor de ser fecundada, ainda que por acidente, e dar à luz óctuplos, todos anões.

Hum.

Em sequência, eu a estrangulei.

Walter devolve a carteira de identidade e a folha de jornal e diz, data venia, senhor Procópio, permita-me pôr em dúvida sua confissão. Creio que você não matou aquela mulher.

Reitero que, sim, que a matei.

Você não tem estatura para isso. A vítima parecia uma daquelas superatletas russas, tinha quase um metro e noventa.

Eu sou praticante de krav magá, comissário, a arte marcial dos hebreus. Aliás, creio que Moisés matou o egípcio e fugiu para Midian, isso está em Êxodo, capítulo dois, versículo onze, com os golpes dessa luta.

Procópio... vai, aqui, de homem para homem, qual é o seu problema?

Problema?

Procópio, como policial eu entendo um pouco da psicologia, da linguagem corporal, facial, de alguém que cometeu um crime. Você não matou ninguém, mas quer ser punido, talvez para expiar alguma culpa imaginária, simbólica. Sério, pode se abrir comigo. Bebe um uísque?

Vocês servem álcool, aqui, nessa delegacia?

Só para os amigos, diz Walter, tirando do armário dois copos e uma garrafa.

Procópio ingere cinco doses até que finalmente diz, eu sou um infeliz, comissário. E isso não se relaciona de modo exclusivo à minha deficiência. Tomo carbolítio desde os vinte anos. Já levei choques elétricos, já frequentei até a macumba, sabe?, e que o Pai me perdoe por essa heresia idólatra. Mas os bezerros de ouro, ou mesmo os de prata ou, até mesmo, os de bronze, às vezes são muito tentadores, que o diga o saudoso Avedis Zildjian, o turco-e-armênio autogenocida e fabricante de címbalos.

Sim. Sem dúvida.

Sem dúvida. O santo padre João Paulo Segundo, do alto de sua sabedoria, intuiu que o corpo humano, caracterizado pela diferenciação genital dos sexos, é um corpo destinado ao amor, à abertura ao próximo, ou seja, é um instrumento da renúncia ao egoísmo. Fundir-se a uma mulher no ato copulatório, sacramentado pelo matrimônio, é um gesto de louvor a Deus.

Hum.

O problema é, que mulher quer se fundir com um anão?, e pior, com um anão pobre?, e pior, com um anão pobre e desdentado? Não há, comissário. Restaram-me as rameiras.

Procópio estende o copo a Walter, que lhe serve a sexta dose.

Li o anúncio no jornal, meu nome é Cinderela, venha enfiar o sapatinho em mim. Liguei e marquei hora, como no dentista. A mulher era uma deusa nórdica, uma valquíria wagneriana, como o senhor mesmo comprovou. Talvez isso tenha me inibido, o fato é que não consegui ter uma ereção para consumar o ato. Ela me ofereceu be-bida, tenta relaxar um pouco, et coetera. Então sugeriu, quer experimentar algo diferente?

Hum.

Eu não sei o que me deu na cabeça, comissário. A mulher abriu um estojo em que havia vários consolos, caralhos de silicone, todos estampados com escudos de times de futebol. Na minha pátria de nascença, a República Oriental do Uruguai, sou Peñarol, no Rio, sou Vasco da Gama, aqui em São Paulo sou Palestra Itália. Como estou em São Paulo escolhi o falo do Palmeiras, então ela colocou um CD com o nó suíno, quando surge o alviverde, imponente, e, Lalá ficou lelé porque Lili deu o loló para o Lulu, me sodomizou.

Walter pensa, será que estou mesmo ouvindo isso?

Eu sou católico, comissário. Entende? Entende a gravidade? Enojado de mim mesmo, pedi para ir ao banheiro vomitar. Apoiei as mãos na borda do vaso, tirei a dentadura, forcei, forcei, mas o vômito não veio. Pus a mão na água da privada, a lambi, mas mesmo assim não adiantou. Então fui embora, comissário, sem nada dizer.

E esqueceu a dentadura lá.

Isso. No chão do lavabo.

Walter pega a prótese da gaveta, a estende a Procópio, que tira a nova e encaixa a velha na gengiva. Como uma luva.

Walter acompanha Procópio até o ponto de táxi, vê o carro virar na esquina. Krav magá. E se essa história que ele contou for mentira? E se foi ele que matou mesmo a mulher esganada? 


Walter acorda em casa pensando na frase, amerykanski filmowy horror, sua recente frase cacoete. 

Repete-a mentalmente algumas vezes, em seguida murmura-a. Abre os olhos. Cogita passar o dia ali, deitado, até que o sono de novo o extinga por oito horas. Sua mente não demorará a parecer um formigueiro, uma superconcentração de coisas agitadas, minúsculas, fora de controle.

Você está onde seu pensamento está. Talvez o momento tenha chegado. Sílvio Santos vem aí? 

Seu pai disse isso quando saiu de casa, podem se preparar, Sílvio Santos vem aí, foi assim que ele ameaçou os filhos e a mulher, vou deixar vocês sem nenhum tostão, vai acabar essa moleza, etc. 

Há muito exorcizado de sua vida, o pai às vezes ainda domina seu vocabulário, forçando Walter a um uso indesejado (e quase sempre descontextualizado) de certas expressões.

Ele se levanta, vai à cozinha, pega um tomate na geladeira, morde-o, mas desiste de ingeri-lo, preferindo tirar a secura da boca com água. 

Decide ir dar uma volta para pensar no que fazer. 

Sábado, o dia do desleixo, homens adultos usando bermuda, fazedores de churrasco, desajeitados (e às vezes grotescos) atletas de fim de semana. Um helicóptero passa próximo, dá para sentir a trepidação.

No elevador apalpa o bolso para ver se está mesmo com a carteira. Sai para a rua e segue pela Vitorino Carmilo até a Alameda Glete. A rede elétrica projeta no chão uma sombra quase retilínea, espaguetes pretos amolecidos, condutores de choques letais.  

O problema: está mesmo apaixonado por Judith. A história, nesse caso, não parece estar se repetindo como farsa.

A continuidade da sombra dos cabos elétricos se interrompe um pouco adiante, onde um trecho da calçada está isolado com tiras de plástico amarelas.

Walter se aproxima.

Um sujeito anda lentamente ao redor dos escombros de um Toyota Corolla.

Foi no poste, o sujeito diz. Travou em cento e cinquenta, o velocímetro. O motorista teve a cabeça decepada.

Walter fica em silêncio, afasta-se.

Seu telefone toca, o nome Gigliola aparece na tela. Ele atende e fala com ela, diz que está indo cortar o cabelo, então desliga.

Gigliola.

Subir sempre a mesma escada por quatro anos insensibiliza o homem àquela escada, ao esplendor de seu engenho, etc., deitar-se com a mesma mulher por dois anos idem.

Walter chega ao salão.

O salão é igual a qualquer outro, homens sentados com um pano branco cobrindo o peito, espelhos, ruído de secador. O cabeleireiro que atende Walter pergunta como é que ele quer o corte. Walter diz para deixar fios longos em cima e tirar bastante nos lados e atrás. 

Na cadeira ao lado da dele há um sujeito de barba que folheia uma revista. O pano está muito apertado em seu pescoço, o que faz vir à cabeça de Walter a palavra apneia. 

Walter também pega uma dessas revistas de fofocas e vira suas páginas e vê uma mulher dessas com os dentes muito brancos e músculos muito tonificados. Seu telefone faz barulho, é uma mensagem de Judith, que ele lê. Depois volta a folhear a revista da mulher dos dentes brancos e dos músculos. O sujeito ao lado, o da barba e do cabelo ralo e seco, está falando com o cabeleireiro que o atende. Ele fala sobre política e usa as expressões delação premiada e condução coercitiva. Walter pensa que o sujeito deve ser professor no período noturno numa dessas faculdades particulares caras e ruins.

Judith.

No começo da semana Walter foi até o Guarujá ver Judith. Fazia catorze anos que eles não se viam.

Passaram o dia juntos, Judith falou de seu trabalho dando aulas de balé numa comunidade carente e explicou que sua condição de cadeirante (os tiros que Camila deu nela, lesão medular, etc.) não atrapalhava em nada o trabalho. 

À noite ela e Walter foram passear na rua e estavam passeando quando uma Kombi entrou na Avenida Leomil. Pelo horário, meia-noite e meia, não era a Kombi da entrega de jornais. 

O carro então se aproximou e um sujeito armado saltou dele e disse, shhhh!, colocando o dedo indicador sobre os lábios. Um outro sujeito também saiu da Kombi, que tinha na lataria um adesivo no qual estava escrito Mostarda Preta, então esse segundo sujeito, que era bem forte, tirou Judith da cadeira de rodas, uma dessas cadeiras bacanas, com comandos eletrônicos e motor elétrico, e a colocou nos braços de Walter, que não tinha qualquer possibilidade de reagir, pois não viera ao Guarujá armado. Então o sujeito forte arrastou a cadeira de rodas para dentro da Kombi e ele e o comparsa partiram.

Walter, sem ter naquele momento outra coisa a fazer, carregou Judith no colo até o apartamento dela. E talvez por esse contato corporal entre eles, continuado e não esperado, os dois foram para a cama, antes que Walter pudesse tomar qualquer providência relativa ao roubo da cadeira.

O cabelo de Walter termina de ser cortado e ele dispensa o secador e vai ao caixa pagar e a moça pergunta quem foi que cortou, Walter aponta e ela faz um xis numa planilha. Walter tenta ler o nome do cabeleireiro, mas não consegue entender a letra, uma letra hesitante que parece ter sido escrita com ajuda de régua. Cogita se é essa moça do caixa que tem essa letra, talvez ela estude numa dessas faculdades ruins e caras onde o apneia-condução-coercitiva talvez lecione. Débito, ele diz, e insere o cartão e depois digita a senha. Sai do salão e vai andando pela rua e observa o próprio reflexo no vidro de um carro e julga que o corte ficou o.k.


O anão Procópio abre um saco de sementes de abóbora e o leva para perto do telefone. O telefone, de discagem, fabricado em 1977, foi comprado numa feira de coisas antigas. Procópio frequenta essas feiras porque são lugares cheios de mulher, alô?, diz a voz feminina que atende sua chamada.

Procópio tem uma conversa cuja consequência é um encontro combinado para dali a uma hora. Procópio não diz à moça, cujo nome é Salete, que ele portador de nanismo.

Caminha ao banheiro e faz a barba. Depois no chuveiro usa a escova para esfregar as costas e testa a própria rigidez peniana pendurando a escova no membro viril (ela tem um barbante com que fica suspensa num gancho, dentro do box). Volta ao quarto dando passos cautelosos, já que as solas dos pés estão úmidas, termina de se secar e se veste.

No táxi Procópio mastiga um pedaço de fio dental de hortelã até que ele perca o sabor, mas vê que é inútil, o excesso de sal das sementes de abóbora deixou em sua boca um saibo tenaz. Pensa em pedir para o taxista parar numa loja para ele comprar isotônico, mas como já está meio atrasado limita-se a pegar outro pedaço de fio.

Chega enfim ao flat de Salete.

Salete está vestida com roupas escuras e não parece ficar surpresa com o fato de Procópio ser um anão. Ele lhe estende duas notas de cem e ela diz o que fez nessa quarta-feira, que subiu onze andares de escada porque quando chegou veio da rua tinha acabado a luz, etc. Então descansa os pés no colo de Procópio e logo eles vão para o quarto.

Talvez a melhor coisa do sexo seja fazer e ver, fast forward, slow motion, pause, se um dia eu ficar cego corto os pulsos, ser anão ainda vá, mas ser anão e cego não daria pé, Procópio pensa enquanto observa Salete indo-e-voltando, os cabelos dela e os bicos dos seios dela acariciando seu nariz (quando tinha treze anos Procópio comprou um pincel e experimentou passá-lo na glande, etc.).

Procópio sai do apartamento de Salete com uma péssima disposição de espírito e vai pela rua rezando, Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, e decide ir para outro lugar antes de voltar para casa.


Eu sou um assassino. 

Quando eu escrevo minha “voz” é bem diferente da minha voz de quando eu falo. O que eu quero dizer com isso é que quem me lê e quem me ouve falar não tem como dizer, são a mesma pessoa. 

Acordei hoje dominado pela sensação de que não via a cor vermelha há dias. Fui à janela e observei a praia, azul, verde, cinza.

Nesse apartamento em Santos aonde achei razoável vir me esconder por uns tempos não achei nada, nenhuma revista, nenhuma caixa de remédio com a tarja vermelha, venda sob prescrição médica. Saí ao hall dos elevadores à procura do extintor de incêndio, como se a estabilidade do real dependesse desse meu ato restaurador, eu me certificar de que a cor vermelha continuava a existir.

Em último caso, eu seria capaz de me mutilar para, à vista do meu sangue, me convencer de que tudo continuava sendo como sempre havia sido? O fato é que, para mim, as coisas deixaram de ser o que eram até há bem pouco tempo. Non plus ultra.

Expulsão, repulsão, nessas duas palavras está embutida a ideia de pulsão, pulso, frequência, oscilação ondulatória. Às vezes tenho sonhos em que revivo um passado (que de fato nunca existiu) em que experimento o oposto da estase e da paralisia, e digo para mim, isso existe, afinal. Um mundo em que matéria e pensamento não são estáticos e opressivos e aprisionadores, mas cheios de dinamismo.

Semana passada saí com uma mulher. (Foi a primeira vez desde, etc.) Os seios da mulher, naturais, eram muito bonitos, então tive um gesto imprevisto em que o contato, a princípio vicário e torpe, se sublimou: coloquei o rosto entre os seios, experimentei aquela pele macia, quente e acolhedora envolver minha testa, nariz, órbitas oculares, maxilar, e a ternura daquilo me causou uma crise de choro que não reprimi. (Creio que as únicas mulheres na frente de quem me sinto à vontade para chorar são as prostitutas. Nem sempre, porém, consigo atingir esse tipo peculiar de êxtase, isso sempre depende de uma insondável qualidade humana que uma pessoa só pode revelar no contato íntimo.)

(Acho que me ocorreu agora uma parábola, uma daquelas historinhas com lição de moral.)

(É assim: você sabe que sua namorada tem fobia de lagartixa, mas decide não dizer nada. Ela vai entrar no banheiro, vai tirar a roupa, vai ligar a água e a lagartixa vai se manter, assim você espera, fora de seu campo de visão. Se você dissesse, ei, não vá ao banheiro agora, teria de se levantar da cama e pensar num jeito de enxotar o pequeno e abominável réptil, enquanto sua namorada diria imprecações e daria gritinhos e corridinhas pelo apartamento. Sim, nem tudo que se vê deve ser mencionado. Se você abrisse a boca, acabaria sendo tratado por ela como uma espécie de suspeito, como se a culpa por ter aparecido a lagartixa, de alguma maneira, pudesse ser sua – como se o fato de alguém testemunhar um fenômeno o obrigasse a explicá-lo também).

O que mais eu posso dizer sobre mim? Eu costumo observar o nariz das pessoas. Narizes pequenos são tímidos, grandes são concupiscentes. Narinas dilatadas indicam cólera, pôr fogo pelas ventas, etc. Observo também como as pessoas manobram o carro, o que está se tornando difícil, as pessoas usam cada vez mais estacionamentos com manobristas. 

Viver é resolver problemas e viver bem é resolver problemas de forma rápida, como dizia o meu pai. O dinheiro paga a melhor cura, a melhor reprodução humana, a melhor justiça. O dinheiro compra até amor verdadeiro, e se for o falso isso no fundo não faz a menor diferença. Acho que estou falando em dinheiro porque aquela vaga-bunda agora resolveu me extorquir, disse que tem uma gravação que prova que eu sou um estrangulador de mulheres, e que seu não pagar tanto ela entregará a gravação às autoridades. Vou ter que dar um tranco nela. Non plus ultra. Outro dia um guardador de veículos que costuma achacar os otários na avenida da praia resolveu se invocar comigo. Ele disse, ô psiu-psiu, tu é grande, mas não é dois. Dois? Só rindo, mesmo. 


Na delegacia, o investigador Junqueira vai à sala de Walter e diz, tem uma mulher aí que quer falar com você.

Sobre?

Ela contou uma história meio esquisita, disse que está sendo ameaçada, não entendi direito.

Manda entrar, Walter diz.

Enrique traz a mulher, que se senta.

Walter acha seu rosto irrequieto e comunicante como o rabo de um gato. Gata em telhado de zinco escaldante, a frase lhe vem à cabeça.

No que posso ajudá-la?

Eu era amiga da Cindy, soube que é você que está investigando o caso dela.

Cindy?

O nome verdadeiro dela era Cinderela.

O.k. Continue.

Eu estou sendo ameaçada por causa de uma coisa que eu sei.

Hum.

Eu sei quem a matou.

Entendi. E essa pessoa que está te ameaçando é a mesma que matou sua amiga?

É.

Como você sabe que foi essa pessoa que matou?

Eu estava falando com ela, a Cindy, Cinderela, no telefone, aí ela disse, peraí, Lavínia, não desliga, aí ela largou o aparelho e foi abrir a porta, então começou o bate-boca, eu reconheci a voz do sujeito, era o ex dela, o Meco, um tipinho bem sangue ruim, sabe?

Sei. Continue.

Aí, nunca se sabe, ela já tinha tido problemas com esse sujeito, eu decidi gravar a briga. Depois li na internet que ela tinha sido morta.

Entendi. E por que você não veio aqui antes?

Porque eu fiquei com medo.

Medo.

É, medo, medo de me envolver.

Certo. E decidiu vir agora porque o sujeito passou a ameaçá-la.

Isso.

Só me explica uma coisa, como foi que esse sujeito, que agora está te ameaçando, soube que você sabia que foi ele que matou?

Não sei.

Você tentou extorqui-lo, não foi? Entrou em contato com ele e pediu dinheiro pela gravação.

Não! Claro que não!

Lavínia, escuta o que eu vou te dizer, se você quer que a polícia te ajude, tem que dizer a verdade.

Juro por Deus, eu não fiz isso! Eu seria a pior crápula do mundo se tentasse faturar em cima da morte da alguém, amiga minha ainda por cima!

O.k. E onde está a gravação?

Lavínia lhe estende um pen drive.

Fica aí, eu vou chamar o escrivão para colher seu depoimento, Walter diz, saindo da sala, então volta e acrescenta, ei, por acaso, nessa conversa que você estava tendo com sua amiga, ela mencionou que havia atendido algum cliente, um cliente deficiente?

Ela falou, sim. Um anãozinho.


Walter decidiu falar com Gigliola sobre seu envolvimento com Judith. Eles estão no apartamento dele, sentados na sala. Walter, no en-tanto, não consegue tocar no assunto. Gigliola pergunta no que Walter está pensando. Ele diz que está pensando numa história. Que está pensando numa história. Numa história. Que o personagem principal da história se chama Reginaldo. Que a avó desse Reginaldo, que o criou, acabou de morrer e deixou uma carta na qual revela que é filha natural de Albert Einstein. Que Einstein, em sua visita ao Brasil, em 1925, supostamente se apaixonou pela bisavó de Reginaldo e gerou o que se pode chamar de prole brasileira. Que, além da carta, a avó de Reginaldo deixou para ele a correspondência de Einstein com sua mãe, bisavó do indigitado-Reginaldo. Que em algumas das cartas Albert, além de prometer que iria se separar da mulher e que viria morar no Brasil, mandou fotos em que aparecia nu, com o falo ereto. Que Reginaldo foi atrás de um perito para se informar como poderia verificar a autenticidade daquelas cartas e fotos. Que o perito indicou um especialista em Albert Einstein. Que o especialista analisou o material e descobriu uma inconsistência gritante: o pênis das fotos não era circuncidado. Que, portanto, quem aparecia nas fotos, embora fosse muito parecido com Einstein, não podia ser Einstein, porque Einstein era judeu e judeus têm o pênis circuncidado. Que na verdade o Einstein que teve relações sexuais com a bisavó do Reginaldo era um falso Einstein, um sujeito que, vendo que as mulheres ficavam doidas com essa história de gênio mundialmente famoso, aproveitou a semelhança física que tinha com o Einstein de verdade e saiu por aí, dizendo que era o famoso cientista e fazendo a festa. Etc., etc. E como nada mais foi dito (por Walter) ou perguntado (por Gigliola), Gigliola tomou coragem e confessou estar apaixonada por outro homem, e que fora ali naquela noite apenas para terminar tudo com Walter. 

 

Uma diligência da polícia civil iniciada a partir de uma denúncia anônima leva à detenção de Luiz Américo, o ex-namorado e assassino de Cinderela.

Confrontado pelo depoimento de Lavínia, por evidências e por contradições em sua tentativa de defesa, Meco acaba confessando a culpa pelo assassinato.

Em que o declarante, Luiz Américo, vulgo Meco, diz ter rompido o namoro com a vítima, Cinderela Gonçalves, ao descobrir que ela exercia a profissão de acompanhante. Em que o declarante diz que, apesar do rompimento, continuou ligado afetivamente à vítima, tendo inclusive se mudado para o flat onde a mesma residia (sem que ela soubesse), para vigiá-la e tentar uma reconciliação. Em que o declarante diz que, na noite em que a vítima foi morta, ele viu um homem portador de nanismo sair do apartamento dela, em aparente estado de embriaguez, e decidiu abordá-la. Em que o declarante diz que tocou a campainha e a vítima atendeu, tendo entrado, assim, em seu domicílio, mesmo sob o protesto da mesma. Em que o declarante diz que foi ao banheiro da vítima e viu no chão uma prótese dentária, tendo feito pilhéria com isso, “arranjou um ‘coronel’ velho e banguela?”, o que provocou uma briga entre os dois. Em que o declarante diz que a vítima, de alta estatura e praticante de musculação, lhe desferiu uma sequência de golpes e que, na tentativa de imobilizá-la, ele, o declarante, lhe aplicou uma compressão cervical com as mãos (esganadura), o que resultou em óbito. Em que o declarante diz que, em pânico, lembrou-se da prótese dentária e simulou com ela uma mordida na região lombar da vítima, visando com isso que outro suspeito fosse apontado. Em que o declarante, que também pratica musculação, diz que vem fazendo uso de esteroides anabolizantes, o que pode ter causado seu surto de agressividade. Em que o declarante diz que, após o ocorrido, voltou a seu apartamento, lá permanecendo até o dia seguinte, quando decidiu ir se esconder no sítio de um parente em Limeira. E que depois, por julgar que sua permanência lá estava se tornando suspeita, o declarante decidiu se esconder num flat em Santos, onde ocorreu sua detenção. E como nada mais foi dito nem perguntado, encerra-se o presente termo, que se acha lido, conferido e subscrito. 


Walter chega em casa com uma sacola de compras. 

Ao colocá-la no chão, uma das garrafas de cerveja se quebra. O líquido vaza como se fosse a bolsa amniótica de alguém em trabalho de parto.

Walter encharca e torce um pano de chão cinco vezes, embrulha os cacos da garrafa com jornal, termina de guardar as compras e vai para a sala.

Ali, no centro da sala, está a nova cadeira de rodas com motor, que Walter comprou para Judith. Ele olha para as revistas sobre a mesa de centro, passo a passo o escândalo, superfaturamentos, propina. Depois corre os olhos pela estante de livros.

Volta à cozinha, pega uma cerveja na geladeira e retorna à sala. Dá um longe gole e sente um arrepio sugar seu rosto.

Recosta-se no sofá e fecha os olhos. 

Judith. 

Por que essa paixão fulminante por ela, anos depois? Culpa por ter levado tantos tiros quanto (Camila atirando, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito vezes), mas não ter tido nenhuma sequela? Não, isso não explica tudo. Se é que explica alguma coisa.

Volta a abrir os olhos e põe-se de pé. 

Caminha até a janela fica olhando os prédios e as ruas da Barra Funda. A Barra Funda, seu bairro, que nos últimos dias vem lhe parecendo ainda mais feio. Talvez porque ele não esteja mais com Gigliola, a mulher mais bonita que já conheceu, e esteja deprimido com isso. Ou talvez porque o mundo fique mesmo mais feio quando uma mulher bonita sai da vida da gente.

EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)