sábado, 5 de dezembro de 2020

JOVEM DE CATORZE ANOS DADO A TER CONVULSÕES SEMPRE QUE VÊ MONGOLOIDES FODENDO, Eduardo Haak

Os pais de Aurélio contrataram uma cuidadora para ficar com ele por algumas horas. Aurélio e a cuidadora, que se chama Violeta, estão agora numa das salas do apartamento. Aurélio, que tem catorze anos, lê um livro e Violeta folheia uma revista.



AURÉLIO (sem tirar os olhos do livro): Primeira vez?

VIOLETA (olhando para Aurélio): Hum? Primeira vez?

AURÉLIO (olhando para Violeta): Que você faz esse trabalho. Cuidar de criança.

VIOLETA: Não, não, já fiz isso algumas vezes.

AURÉLIO: Legal.

Aurélio fecha o livro e o coloca sobre o braço do sofá. Violeta pega o telefone e fotografa uma página da revista.

AURÉLIO: Eu falei criança, embora, como você pode ver, eu não me inclua exatamente na categoria. Tenho catorze anos.

VIOLETA (distraída): Hum-hum.

AURÉLIO: Você acha o.k. esse trabalho?

VIOLETA (pensativa): Hum... É. Acho o.k.

AURÉLIO: Já te aconteceu alguma coisa fora do comum trabalhando com isso?

VIOLETA: Não. (Fecha a revista.) Que coisa fora do comum poderia acontecer?

AURÉLIO: Sei lá. Você passar a noite numa casa mal-assombrada, alguma coisa assim.

VIOLETA (rindo): Não, não, graças a Deus, não. Pra ser sincera a coisa mais incomum que já me aconteceu nesse tipo de trabalho está acontecendo aqui, hoje. Nunca tinha tomado conta de alguém da sua idade. Seus pais não te deixam ficar sozinho?

AURÉLIO: Eu tive uma convulsão há dois anos. Eu nunca mais tive nada, mas como os médicos ainda não descartaram o diagnóstico de epilepsia, eles ficam assim, preocupados o tempo todo.

VIOLETA: Entendi. Bom, eles não me falaram nada sobre isso. Você não toma nenhum remédio?

AURÉLIO: Não. (Silêncio.) Ei, fica tranquila, eu não vou ter uma crise logo hoje. A não ser que você me faça rir.

VIOLETA: Hem?

AURÉLIO: Melhor dizendo, a não ser que você me faça estourar de rir. Rir mesmo, aquelas risadas de travar o queixo. Eu tive a convulsão assim, de tanto rir.

VIOLETA: Nossa. E o que quê te fez rir tanto?

AURÉLIO: Foi um vídeo que um amigo me mostrou. Um vídeo de uma orgia só com portadores de Síndrome de Down.

VIOLETA: Cê tá falando sério?

AURÉLIO: Claro que estou.

VIOLETA: E onde vocês acharam isso?

AURÉLIO: Foi ele que achou. No archive ponto org. Um filme amador rodado em super oito, nos anos setenta.

VIOLETA (indignada): E você acha que uma coisa degradante assim é motivo de graça?

AURÉLIO: Não, não acho. É que esse meu amigo reeditou o filme, botou uma música chamada Mongoloid, de uma banda antiga chamada Devo. Botou a música com rotação acelerada. Sei lá. Acabei... rindo. (Aurélio se levanta.) Nunca te aconteceu de você rir de uma coisa imprópria?

VIOLETA: Não que eu me lembre.

AURÉLIO: O.k. (Caminha até a janela da sala, olha para a rua, volta-se para Violeta.) Ó, não vai você agora ficar achando que eu sou um tarado, um depravado...

VIOLETA: Depende. E se eu achar isso pode crer que eu te largo aqui sozinho.

AURÉLIO: Não vai precisar. (Pegando o telefone.) Vou pedir alguma coisa no China in Box. Você quer?

VIOLETA: Não. Obrigada.

Aurélio telefona e faz o pedido, boa noite, eu queria fazer um pedido... é o carne com legumes pequeno executivo mais rolinho primavera... exato... hum... pode ser... Coca Zero... não, não... dinheiro, troco pra cinquenta... isso... o.k., obrigado. Devolve o telefone à base e volta a se sentar.

VIOLETA (contando dinheiro): Eu tô com duas notas de cinquenta euros aqui, tem como você me trocar por reais? Se não for ser incômodo.

AURÉLIO: Cem euros?

VIOLETA: É, eu fiz um trabalho ontem, o cara me pagou assim.

AURÉLIO: Como é que está o câmbio?

VIOLETA (consultando): Deixa eu ver... euro a seis e... dá seiscentos e vinte e cinco.

AURÉLIO: Beleza. Quer trocar agora?

VIOLETA: Não precisa. Depois a gente faz.

AURÉLIO: O.k.

Aurélio vai até uma adega portátil, de onde tira uma garrafa de vinho. Pega também um saca-rolha, que introduz na garrafa.

AURÉLIO (girando o saca-rolha): Foi um trabalho desses, de cuidar de criança?

VIOLETA: Os cem euros?

AURÉLIO: É.

VIOLETA: Não, não foi. Foi um trabalho de modelo vivo.

AURÉLIO: Aquela coisa de ficar nua pras pessoas desenharem? (Abre a garrafa.) Quer vinho?

VIOLETA: Quero, obrigada. É, às vezes eu poso pra alunos de desenho.

Aurélio tira de um armário duas taças. Estende uma a Violeta e a serve.

AURÉLIO: Eu desenhava bastante, até uns onze, doze anos. Aí parei.

VIOLETA: Por quê?

AURÉLIO (sentando-se e servindo-se): Sei lá. Encheu.

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: Pra te dizer a verdade eu me encho de tudo depois de um tempo. Acho que quando eu tiver uns vinte e cinco anos não vai ter sobrado nada, eu vou ter me enchido de todas as coisas que existem. Tal coisa?, ugh, encheu, tal coisa?, encheu.

VIOLETA (rindo): Credo, rapaz.

AURÉLIO: É sério.

VIOLETA: Mas... nunca mais te deu vontade?

AURÉLIO: De desenhar?

VIOLETA: É.

AURÉLIO: Às vezes... um pouco.

VIOLETA: Eu acho que só tá te faltando um pouco de estímulo. (Silêncio.) Quer me desenhar depois?

Blackout.

Blackout, em linguagem técnica teatral, significa escurecimento total do palco.

Quando o palco é aceso, mais ou menos uma hora e meia se passaram. Aurélio e Violeta estão sentados à mesa de jantar.

VIOLETA (brincando com os palitinhos que vieram na refeição chinesa de Aurélio): Ó, tenta resolver essa... faca está pra revólver assim como garfo está pra?

AURÉLIO (pensativo): Hum...

VIOLETA: Garfo e faca... revólver e?

AURÉLIO (olhando para o garfo que usou): Faca está para revólver assim como garfo está para... batedeira elétrica?

VIOLETA: Batedeira elétrica? (Rindo.) Não, não.

AURÉLIO: Sei lá. Existe resposta pra isso?

VIOLETA: Existe.

AURÉLIO: Rastelo. Aqueles rastelos grandes, pra carpir mato.

VIOLETA: Não.

AURÉLIO: Desisto. Conta aí, faca revólver, garfo...?

VIOLETA: Não, senhor. Quebra a cabeça aí mais um pouco.

AURÉLIO: Sem chance. Agora, sem qualquer chance. Esse vinho e essa comida me chaparam total.

VIOLETA: O.k.

Aurélio se levanta e vai se deitar no sofá. Violeta vem atrás dele e anda até a janela.

VIOLETA (forçando um tom casual): Diga uma coisa... seus pais devem chegar que horas mais ou menos?

AURÉLIO: Hum. Difícil saber.

Violeta discretamente vê as horas e se volta a Aurélio.

VIOLETA: Vai, menino, enxota esse sono aí, eu não tô a fim de ficar aqui nesse baita apartamento sem ninguém pra conversar.

Aurélio se senta, esticando as pernas sobre uma mesa de centro. Violeta também se senta no sofá, a uma almofada de distância de Aurélio.

AURÉLIO: Ó, esse negócio do faca está pra revólver assim como garfo está agora não sai da minha cabeça. (Riso seco, nasal.) Culpa sua.

VIOLETA (simpática e debochada): Culpa sua, oras bolas, que tá aí, tão chapado de vinho que não consegue resolver um probleminha de lógica elementar.

AURÉLIO: É.

VIOLETA: Escuta, aquela coisa que você falou sobre o filme da orgia com os portadores de Down... aquilo é verdade mesmo?

AURÉLIO: Sim.

VIOLETA: E... só por curiosidade... eles fazem as coisas normalmente? Não fica uma coisa, sei lá, meio desengonçada?

AURÉLIO: Não, é normal. Claro que eles não são atletas sexuais, tem aquela coisa meio molenga deles. Fora isso, normal.

VIOLETA: Mas com que propósito esse filme foi feito?

AURÉLIO: Sei lá eu. É uma daquelas coisas bizarras dos anos setenta, a época da liberação sexual, da quebra de todos tabus, daquelas seitas que obrigavam as mães a masturbarem os filhos...

VIOLETA: Cruz, credo... Você não se excita com essas coisas, não, né?

AURÉLIO: Claro que não.

VIOLETA: Nada de orgasmo, só ataque epilético.

AURÉLIO: É. Freud provavelmente escreveria um livro sobre mim. Jovem de catorze anos dado a ter convulsões sempre que vê mongoloides fodendo.

Aurélio e Violeta riem.

Silêncio.

AURÉLIO (cruzando os braços atrás da nuca): Violeta... posso te fazer uma pergunta?

VIOLETA: Claro.

AURÉLIO: Uma hora aí você me perguntou se eu queria te desenhar. A gente acabou saindo do assunto e tal... e...

VIOLETA: Sim?

AURÉLIO: Na verdade eu não vou te fazer uma pergunta, eu vou fazer um encadeamento lógico, depois propor uma conclusão, aí você diz o que você acha. O.k.?

VIOLETA (um pouco melindrada): O.k. Quer dizer... acho que o.k.

AURÉLIO: Posso começar?

VIOLETA: Vai, pode.

Aurélio fica de pé. Vai até a mesa, se serve de vinho e volta.

AURÉLIO: Muito bem. Numa sexta-feira qualquer do outono de 2020 você chega num apartamento pra fazer um trabalho que você tá habituada a fazer, tomar conta de criança. Só que você descobre que não é exatamente uma criança dessa vez, mas um latagão de catorze anos.

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: Aí o latagão de catorze anos te conta uma história bizarra que envolve convulsão e orgia de deficientes mentais, o que denota alguém com grande curiosidade sexual e absoluta inexperiência nesse âmbito.

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: E isso te dá uma ideia. Mas, pra pôr essa ideia em prática, antes você precisa descobrir algumas coisas.

VIOLETA: Por exemplo?

AURÉLIO: Saber se o latagão tem dinheiro em espécie em casa. (Violeta ri.) Então você joga o papo, me troca cem euros?

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: E o latagão diz, sim, claro, sem problema. (Dá um gole no vinho.) Bom, ao saber que o latagão tem dinheiro em casa, imediatamente você passa a tratá-lo melhor e diz que ganhou esses euros posando nua para um estudante de desenho. O que, obviamente, não é verdade. Ninguém paga essa grana toda por um trabalho de modelo vivo.

VIOLETA: Muito bem. E?

AURÉLIO: Nessa altura o latagão sabe que a bela baby sitter também trabalha tirando a roupa e que, pra tirar a roupa, metonímia, ela cobra o equivalente a cem euros. Papo vai, papo vem, ela propõe, talvez de brincadeira, talvez não, quer me desenhar depois?

VIOLETA: Hum-hum.

AURÉLIO: Aí a gente, ou melhor, eu janto, bebo um pouco e aparentemente ameaço pegar no sono.

VIOLETA: Aparentemente?

AURÉLIO: É. Digamos que eu quisesse ver como você reagiria caso eu ameaçasse dormir.

VIOLETA: O.k.

AURÉLIO: Aí, como quem não quer nada, você pergunta se meus pais vão demorar. Sim, eles não podem estar aqui pra você pôr seu plano em prática. Aí você diz, vai, levanta, não quero passar a noite aqui nesse apartamentão conversando com as paredes.

VIOLETA: Certo.

AURÉLIO: Bom, acho que os dados estão todos aí. Quer se pronunciar?

Blackout.

Quando o palco volta a ser aceso vemos Aurélio e Violeta deitados, nus. A roupa de Aurélio está jogada pelo chão e a de Violeta está organizadamente disposta sobre uma mesa. As duas camisinhas usadas por Aurélio estão amarradas e penduradas no criado-mudo. As notas de cinquenta reais que Violeta recebeu pelo programa estão dentro de sua bolsa. Sim, Aurélio interpretou corretamente as ações e palavras insinuantes de Violeta: além de baby sitter e modelo vivo, ela também trabalha como prestadora de serviços sexuais.

AURÉLIO: Posso te fazer uma pergunta?

VIOLETA: Pode.

AURÉLIO: Você, que é uma moça experiente e tal, baseada na sua experiência, você acha que essa nossa transa aqui foi minha primeira vez?

VIOLETA: Hum. É, acho que sim. Acertei?

AURÉLIO: Mais ou menos.

VIOLETA: Mais ou menos como?

AURÉLIO: Então, escuta só a história que eu vou te contar. Escuta e analisa, pode ser?

VIOLETA: Claro.

AURÉLIO: O.k. Então, uma época teve uma garota que morou aqui no prédio. Ela tinha uns dezenove, vinte anos. Ela gostava de mim e me dizia coisas como, você já é lindo com doze anos, imagina só daqui a uns seis, sete, vai fazer um estrago só com a mulherada.

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: Ela também às vezes pedia para eu amarrar a parte de cima do biquíni dela, ela dizia que não tinha amarrado direito, que estava frouxo. Imagina só. Sempre que isso acontecia eu tinha que imediatamente pular na piscina pra esconder meu estado. Ela era bonita, altona, tinha uns peitões tipo de mulher americana.

VIOLETA: Hum-hum.

AURÉLIO: Um dia ela me convidou pra ir ao apartamento dela jogar xadrez. E é claro que eu fui. Ela abriu uma garrafa de vinho e ficamos lá, jogando. Venci as duas primeiras partidas. Então ela, que tinha bebido toda a garrafa, me propôs o seguinte: se eu vencesse a próxima partida, ela faria sexo comigo. E se eu não vencesse ela me daria um prêmio de consolação que eu ia achar legal também.

VIOLETA: Hum.

AURÉLIO: Então começamos a terceira partida. E ela se mostrou uma jogadora implacável, ficou claro que ela havia perdido as duas partidas anteriores de propósito. Em onze lances ela me deu xeque-mate.

VIOLETA: Ó, que peninha. E que vaca essa mulher.

AURÉLIO: Pois é. Aí ela disse, como eu prometi, vou te dar o prêmio de consolação. Então ela pegou uma das peças do tabuleiro, levantou-se e disse, venha. Segui-a até o quarto. Lá ela se deitou na cama, tirou as calças e a calcinha e abriu as pernas. Aí ela me estendeu a peça de xadrez, o rei, e disse, pode me penetrar com isso.

VIOLETA: E você?

AURÉLIO: Eu fiz o que ela pediu. Eu nunca tinha visto ao vivo uma genitália feminina. Então, quando eu terminei de penetrar o rei em seu canal vaginal, sei lá, a excitação e agitação que eu estava sentindo, eu sei que eu acabei ejaculando. Gozei vestido mesmo, minha calça ficou toda molhada, como se eu tivesse feito xixi nela.

VIOLETA: Hum-hum.

AURÉLIO: Depois disso tudo eu passei a viver com a dúvida: posso me considerar virgem ainda? Afinal, eu tinha penetrado uma mulher, ainda que com uma peça de xadrez, e tinha gozado e tudo, ainda que dentro das minhas próprias calças.

VIOLETA: É. É bem ambígua essa situação aí. Sei lá. Que sensação prevaleceu pra você?

AURÉLIO: Como assim, sensação?

VIOLETA: Que sensação prevaleceu depois de você penetrar uma mulher com uma peça de xadrez, a sensação que você havia deixado de ser virgem ou que continuava virgem?

AURÉLIO: Que eu continuava virgem. Mas então eu raciocinava um pouco e concluía que, de certo modo, eu não era mais exatamente virgem.

VIOLETA: Hum. É. Vai saber.

Violeta se levanta e começa a se vestir. Aurélio faz o mesmo.

AURÉLIO (colocando a camiseta): Posso te perguntar mais uma coisa?

VIOLETA: Pode.

AURÉLIO: Como é que aquele problema do faca está pra revólver assim como garfo está pra se completa?

VIOLETA (rindo): Aquilo lá não se completa.

AURÉLIO: Não?

VIOLETA: O problema não tem solução. Foi blefe meu.

Aurélio ri.

AURÉLIO: É, gostei.

VIOLETA: Gostou? Gostou do quê?

AURÉLIO: Gostei que você abriu o jogo. Você deve ser uma garota legal. Uma garota que assume que blefa quando blefa só pode ser uma garota legal.

VIOLETA: Hum-hum.

AURÉLIO: As mulheres em geral não são tão legais assim.

VIOLETA: Pode crer. Não são mesmo.

Blackout, pano cai.

EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)