sábado, 5 de dezembro de 2020

CLAREZA E MÉTODO, Eduardo Haak

Eu estava pensando na palavra derrelição, que significa desamparo, e estava sentado no café com um ar distraído, mas eu não estava distraído, estava decorando um trecho do livro que estava lendo, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, eu estava repassando mentalmente essa frase e devia estar com aquela expressão vaga no rosto, com os olhos fixados no vazio, quando percebi o sujeito me encarando, um desses sujeitinhos de boné e peito estufado com postura de cão territorial, uma postura de rottweiler olhando fixamente para um potencial invasor do seu espaço, um desses sujeitos cúpidos, gananciosos, ferozes, devoradores e animalizados que provavelmente vão acabar se dando muito bem no mundo corporativo das multinacionais e dos bancos. Então ele me disse, que quê tá olhando? E foi só aí que eu percebi que o sujeito estava acompanhado de uma mulher, quer dizer, eu até havia reparado antes, mas é claro que eu não estava encarando a mulher, que era bonita e tinha meio jeito de cadela no cio, eu não gosto de confusão e sei que esses sujeitos são doidos pra arrumar treta e logo sair dando porrada, eu conheço bem o tipo, na minha faculdade só dava esse tipo de sujeito, esses arrivistas cheios de testosterona, geralmente vindos da classe média baixa, esses arrivistas que não deixam qualquer dúvida de que hão-de-vencer e que por isso sempre pegavam as garotas mais bonitas e gostosas de lá, algumas eram putas de luxo, todo mundo sabia, mas e daí?, aquilo era uma latrina mesmo, uma dessas merdas de faculdade que os alunos assinam a lista de presença e depois vão para o bar beber, foi por isso que acabei largando, por isso e porque não estava dando pé pagar as mensalidades, na época eu já trabalhava como passeador de cachorro e esse trabalho não dá muito dinheiro, sair por aí segurando a coleira de cinco ou seis cães, esperar os bichos mijarem e cagarem e depois recolher da calçada aquele excremento todo, minha mãe recebe uma miséria de aposentadoria, então minha renda praticamente toda vai para as nossas despesas domésticas, pão, açúcar, batata, farináceos, farelos, carboidratos simples de rápida absorção, fora os remédios dela e os meus, que eu preciso tomar por causa da epilepsia, alguns desses remédios que eu tomo até são baratos, mas alguns são caros, faz anos que não tenho nenhuma crise, hoje o sujeito pode ser epilético e ter uma vida totalmente normal, é só tomar os remédios direitinho, coisa que eu nunca deixo de fazer.

Como eu estava dizendo, o cara cismou que eu estava olhando para a namorada dele e disse, que quê tá olhando, hem, ô babaca?, então ele se levantou e veio até mim e aproximou o rosto do meu e bateu com a testa no meu nariz. A pancada me deu uma dor aguda e me fez sentir um gosto amargo no céu da boca e a namorada do cara segurou o braço dele e disse, para, Sérgio!, mas eu notei que no fundo ela devia gostar de ver o sujeito bancando o machão, a voz dela estava obviamente excitada, como quando uma pessoa está com vontade de rir mas tenta disfarçar, então os dois foram embora, o rottweiler e a cadelinha no cio, e eu fui até o banheiro lavar o rosto, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de ilusões, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto em teu peito, e também seu deserto, o trecho do livro que eu estava decorando me veio inteiro, então eu saí do café e fui andando até a minha casa, andando e pensando. Não estava sentindo ódio, ou melhor, não estava sentindo ira, ira alguma. Quando eu era mais jovem eu odiava, ficava babando, estrebuchando de raiva, mas isso é porque eu não sabia pensar, pensar com clareza e método, eu me decepcionava com alguma coisa e, pronto, ficava lá, todo cheio de ódio impotente, me decepcionava porque aquelas mulheres lindas do tipo que acabam se casando com libaneses ricaços, turcos cheios da nota, etc., nunca se interessavam por mim e, pronto, ódio-ódio-ódio, sim, por que as únicas mulheres que eu consigo pegar são essas mocorongas feiosas de faculdade de letras?, sabe o tipo?, é, aquelas meninas com aquelas bundinhas melancólicas, envergonhadas, minúsculas, enfiadas pra dentro, sim, parece que essas meninas vivem com pavor de levar um chute no meio do cu, mulher tem que ter uma bunda não necessariamente grande, mas que sugira generosidade, uma bunda que pareça dizer ao mundo, vinde a mim, etc., eu ficava pensando essas coisas e aos poucos meu pensamento foi deixando de ser só um monte de frases soltas e desajeitadas e foi se tornando um pensamento claro e metódico, perceber essa minha evolução foi uma das maiores alegrias que já tive, o sujeito pode ser feio, pobre e epilético, mas se ele sabe pensar com clareza e, consequentemente, sabe com o que realmente pode contar, as possibilidades dele praticamente se igualam às de qualquer bacana.

Não tive dificuldade de descobrir algumas coisas sobre o sujeitinho de boné e peito estufado que bateu com a testa no meu nariz. Sei onde ele mora e sei os trajetos que ele faz a pé – hoje, por exemplo, ele vai passar por uma rua de pouco movimento. Cuido do cane corso de uma senhora viúva, levo o bicho para passear, o cachorro na verdade era do marido dela, a velhota não teria a menor condição de segurar aquela fera de quase sessenta quilos numa coleira, ela sempre me diz, o Boris adora você, adora!, rebatizei o Boris como Lavrenti Beria quando comecei a treiná-lo para que ele obedecesse aos meus comandos, Lavrenti Beria, para quem não sabe, era o chefe de polícia secreta do Josef Stalin, etc., já antecipei também todas perguntas que a polícia poderá me fazer, como foi que isso aconteceu?, ah, eu sou passeador de cães e levei esse cão pra passear e aconteceu de eu ter uma crise epilética, aí, quando recobrei a consciência, ele havia atacado e matado o rapaz. Meu pensamento é claro e metódico, meu temperamento é equânimo, palavra que quer dizer desapaixonado, logo minhas ações todas estão fadadas ao sucesso.



 

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EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)