sábado, 5 de dezembro de 2020

DITADURA MILITAR, Eduardo Haak

Murilo está dizendo que viu hoje um Electra das Lineas Aereas Paraguayas descendo em Congonhas com um dos motores parados. Murilo é obcecado pelo Paraguai e tem na carteira uma cédula de cinco guaranis, que é o dinheiro que circula no Paraguai. A imagem que aparece na cédula de cinco guaranis é a de uma mulher com jeito de cigana, segurando um vaso, la mujer paraguaya, como está escrito no canto da cédula. Estamos na sala do apartamento do Murilo, uma sala cheia de vasos com samambaias, rendas portuguesas, antúrios. Estamos bebendo uísque Ballantine’s e fumando cigarros John Player Special de uma embalagem cilíndrica, de plástico, onde cabem cem cigarros. O disco que está tocando no aparelho de som é o Breakfast in America, do Supertramp. Os pais de Murilo estão viajando e nós estamos agora conversando sobre as pessoas que ou-temos-certeza, ou-desconfiamos que são informantes do SNI. Aquele mulato pernóstico que vive no Gimba e que toda semana aparece com uma moto ou um carro diferente: quase-certeza. Aquela coroa que é corretora de imóveis e que usa um coque estilo Eva Perón e que volta e meia está aqui no prédio e que todos nós desconfiamos que deve render uma fodaça: é-possível-que. (Eu já descasquei altas bronhas pensando nela, imaginando ela chupando meu pau enquanto eu desfazia aquele coque Eva Perón e apalpava suas tetas incrivelmente firmes para uma mulher que deve estar beirando os cinquenta.) O sujeito que mora no 102, o que fez CPOR e que ninguém sabe direito no que trabalha: quase-certeza-absoluta. Aquele outro sujeito meio com voz de anão que costuma aparecer no fliperama da Rua Iguatemi e que disse que tinha um esquema pra conseguir dispensa do serviço militar, cem dólares por cabeça: talvez-sim. Meu primo Gato, que embora viva de fazer saques no cofre do padrasto (cofre onde o padrasto guarda as propinas que recebe como fiscal do ICMS) e que também tire umas granas comendo bichas endinheiradas que pegam rapazes bonitos em fliperamas, sim, é possível que o Gato seja informante do SNI, porque ele, além de inescrupuloso, é ganancioso.

Decidimos passar uns trotes telefônicos e ligamos para o careca comunista, que é maestro e é parente distante do Murilo. O Murilo sempre conta histórias sobre esse parente – diz que ele costuma fazer orgias num hotel no Guarujá, diz que ele é giletão, diz que a própria mulher come ele com um pinto de plástico, etc. O maestro atende o telefone e o Mug, fazendo uma voz áspera e marcial, identifica-se como major Venceslau, do centro de informações do exército, e diz que o maestro está intimado a comparecer à sede da segunda região militar para prestar esclarecimentos sobre contrabando de material pornográfico, material esse que contém fotos de pederastia, etc. Mug desliga o telefone gargalhando, diz que o maestro mandou ele foder-se, e assim que Mug põe o aparelho no gancho o aparelho toca e ele atende, mas quem está do outro lado da linha permanece em silêncio enquanto o Mug diz, alô?, alô?, então a pessoa desliga e o Mug põe de novo o aparelho no gancho e cinco minutos depois o telefone toca de novo e mais uma vez a pessoa que está do outro lado da linha não diz nada, enquanto o Murilo, que foi atender dessa vez, diz, e aí, sua bichona, não vai falar?, quer levar uma trolha no meio do cu?

As duas ligações atiçam nossa paranoia, quem será que foi?, estranho acontecer isso logo em seguida ao trote, aí o Murilo diz que foi coincidência e o Mug diz, é, pode ser que seja coincidência, mas pode ser que não seja, esse seu parente aí, o careca comunista, não é metido com gente importante?, e o Murilo responde, metido com gente importante da TV e do meio artístico, não com militares, o apelido dele é careca comunista, é só pensar com um pouco de lógica. Aí deliberamos mais um pouco e concluímos que alguém ter o apelido de careca comunista não significa nada, que carecas comunistas podem perfeitamente trabalhar para o SNI como informantes ou até coisa mais graduada. Bebemos mais uísque e fumamos mais John Player Specials e decidimos ir dar uma volta de carro e vamos até Congonhas e ficamos lá, perambulando, aí compramos um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos e o Mug se lembra daquela história do hangar da VASP, que tinha um avião antigo lá, a carcaça de um Caravelle que servia de motel para menores de idade, que o Anuarzinho disse que foi lá descabaçar com uma puta e que a mulher teve um ataque de pânico porque o avião estava cheio de baratas e que por isso o Anuarzinho não descabaçou naquela vez, e eu penso que na última vez em que estive aqui em Congonhas eu vi os caras da banda A Cor do Som e vi uma menina que estudou comigo no Cristo Rei, a Stella-Stellá, pedindo autógrafos para o Dadi e o Mu, então vamos embora de Congonhas e na Rubem Berta um carro da polícia emparelha com a gente e o tira que está na janela nos aponta aquele farol de mão e eles mandam a gente encostar e somos revistados e os caras fazem a maior onda, dizendo que vão encaminhar os menores – eu e o Mug – para a Febem, aí, quando a gente já está bem com o cu na mão o policial com pinta de chefe diz, vai, sumam daqui, e vão direto pra casa, hem?, rua essa hora não é lugar pra criança, então voltamos para o Itaim e o Murilo me deixa na minha casa e eu entro e vejo que meus pais estão dormindo. Subo para o meu quarto e me deito, mas minha cabeça não para de funcionar, parece que tem uma britadeira dentro dela, então me levanto e vou até o banheiro e pego um Valium 10 mg na frasqueira da minha mãe e engulo o comprimido e vou até uma das extensões e tiro o telefone do gancho e olho durante um tempo para o aparelho e observo os números meio manchados de tinta por causa do hábito que as pessoas têm de discar o telefone usando canetas esferográficas e sinto que ao tirar o telefone do gancho estou me livrando de uma ameaça difusa, inespecífica, mas não por isso menos aterrorizante, então vou para o quarto e me deito e espero que o Valium logo faça efeito e que me extinga por umas oito, nove horas.

EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)