sábado, 5 de dezembro de 2020

ORGASMO, Eduardo Haak

Até os quarenta anos Ofélia nunca havia tido a consumação sexual chamada orgasmo. As carícias íntimas masculinas (e ocasionalmente femininas) lhe agradavam, mas de modo difuso. Por ser especialmente bonita, as pessoas que a conheciam costumavam lhe atribuir uma vida erótica caracterizada pela plenitude e pela variedade. Nenhuma dessas pessoas cogitaria que Ofélia pudesse ser uma mulher sexualmente disfuncional.

A busca pela origem de sua disfunção foi caracterizada por diagnósticos hipotéticos que nunca levaram a um tratamento eficaz (diagnósticos hipotéticos, já que os exames solicitados pelos especialistas que Ofélia consultou sempre redundaram em não apontar nada de errado em seu organismo). Igualmente fracassadas foram suas incursões por psicólogos, terapeutas sexuais e instrutores de kundalini yoga.

Às vésperas de completar quarenta e um anos Ofélia foi ao dentista fazer a avaliação semestral. O doutor C. Cerveira tirou uma radiografia panorâmica e disse que ela teria de extrair os terceiros molares, que estavam inclusos. A cirurgia transcorreu sem maiores incômodos, apesar da apreensão inicial de Ofélia (arrancar quatro dentes com um dentista chamado Calígula, etc.). Foi então que Ofélia, durante os dias de convalescença e início da cicatrização, teve sua primeira descarga orgástica. Essa capacidade orgástica, porém, só se manteve até a cicatrização das gengivas se completar.
Um novo périplo pelos mesmos especialistas que Ofélia já consultara não levou a qualquer esclarecimento – nenhum médico soube explicar por que um caso de anorgasmia foi temporariamente curado por uma cirurgia de extração de dentes.

Ofélia queria provar de novo aquela sensação efervescente, aquela angústia deliciosa, e para isso experimentou ir a um daqueles dentistas que simplesmente fazem o que o paciente pede, um tiradentes tradicional que lhe extraiu um dos segundos molares da arcada inferior. Nos onze dias que durou sua capacidade orgástica após o procedimento exodôntico Ofélia fez sexo com cinco homens diferentes e atingiu o clímax sessenta e uma vezes.

A vida de Ofélia então passou a ser o cálculo de quantos dias ainda dispunha como mulher capaz daquele consummatum est: restam-me dezoito dentes naturais (os dentes extraídos foram sendo substituídos por implantes), portanto terei mais ou menos cento e oitenta dias. Aos quarenta e seis anos (e aproximadamente mil e duzentos orgasmos) lhe sobravam na boca apenas quatro dentes naturais, ou seja, a possibilidade de quatro períodos orgásticos que durariam, cada um, pouco mais de uma semana. Ofélia estava passando férias em Playa Hermosa, no Uruguai, quando conheceu Esdras.

Esdras saíra do Brasil e se estabelecera no país vizinho já havia quase vinte anos. A primeira conversa de Ofélia e Esdras durou quarenta minutos, e a segunda conversa deles durou quase oito horas. Foi uma daquelas conversas que acontecem duas ou três vezes na vida de uma pessoa, em que tudo que é fundamental é contado ao interlocutor. Ofélia contou sobre sua estranha disfunção e disse estar insegura de ir para a cama com Esdras naquele momento. Que para gozar fazendo sexo ela teria de arrancar um dos quatro dentes naturais que lhe restavam. Que talvez fosse melhor que eles jamais tivessem se conhecido, que o amor invariavelmente só complica as coisas. Esdras disse, não se preocupe, vamos apenas ficar juntos, no escuro, ouvindo nossas respirações. Os dois foram para o quarto e se deitaram. Ofélia então experimentou se deixar ser penetrada e, ao ouvir no escuro a respiração de Esdras misturada à própria respiração, teve um orgasmo tão forte que a única analogia que lhe passou pela mente foi a de mil dentes sendo arrancados de uma só vez.



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EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)