Não me interesso por nada que essa mulher que está comigo, agora, aqui no meu apartamento, diz. Ela está dizendo uma frase que tem a palavra desambiguação. Não sei por que me detenho nessa palavra, desambiguação. Talvez pelo modo como as vogais e as consoantes escoam pela voz dessa mulher, que tem uma beleza fria e um odor neutro e um corpo que, embora seja disciplinado pela ginástica, no fundo é medíocre – uma mulher com quem mantenho relação apenas por saber que nunca irei me apaixonar por ela e também porque tudo o que ela diz é esquecível (sua presença também é esquecível), e também porque ela é uma pessoa bem educada que muito provavelmente nunca vai me causar nenhum transtorno ou me fazer passar por um vexame. Quando faço sexo com ela não sinto nenhum tipo de arrebatamento – sinto-me executando uma função fisiológica, uma daquelas funções fisiológicas que envolvem esforço e alívio. Sim, depois que ela vai embora e eu tomo banho e me deito, sinto-me como se um punhado de toxinas tivessem sido eliminadas do meu sangue. Durmo bem, com a cabeça vazia, e meu sono costuma ser uma daquelas telas escuras, sem sonhos.
Falei em vexame e transtorno e pensar nisso me leva imediatamente à mulher-encrenca, com quem eu poderia eventualmente me encontrar – beleza estranha, um cheiro muito bom, geralmente subliminar, um cheiro que lembra cloro, não aquele cheiro residual que as nadadoras têm, mas um odor intrínseco –; contudo, a mulher-encrenca é reivindicadora e tem tendências obsessivas; é dada a episódios de “mediunidade”; bebe muito. O que é uma pena, pois o sexo com ela sempre foi muito excitante, a mulher-encrenca é uma dessas raras mulheres que de fato têm talento para a cópula e ações correlatas (chupar, dar o cu, etc.).
O lugar da mulher-encrenca acabou sendo ocupado por uma mulher cuja principal qualidade talvez seja o bom temperamento, uma mulher que eu posso chamar de a-mulher-que-faz-eu-me-sentir-um-homem-bom. Recebo-a eventualmente aqui. Ela tem um rosto bonito, mas no qual aparece muitas vezes uma expressão tola, idiota mesmo, que sempre acho extremamente desestimulante. Seu corpo é normal – peitos um pouco acima do normal – e seu cheiro intrínseco eventualmente tem qualquer coisa que me é aversiva, um cheiro que lembra perfume oxidado (o que é estranho, pois ela normalmente não usa perfume). Ela é a mulher com a pior situação financeira com quem tenho algum envolvimento, daí que a ajudo com frequência, saldo débitos, pago condomínios atrasados, etc. Eventualmente faço alguma grosseria com ela, para ela não me idealizar demais, não achar que sou um homem perfeitamente bom. Quase sempre escolho falar de outras mulheres, comparando-a desfavoravelmente. (Intimamente me arrependo dessas humilhações a que a submeto. Ela é uma pessoa boa, tem um bom coração, não merece ser maltratada. Ou: boa pessoa coisa nenhuma, é uma sem vergonha interesseira que só mantém a fala mansa comigo porque sabe que não tem cacife pra falar grosso. Qualquer dia lhe dou uma botinada definitiva.)
Mulheres: tem também a aparição ou mulher-com-forte-sensibilidade-tátil, que surge a cada dois ou três meses e logo desaparece. Das minhas mulheres, é a única por quem já fui apaixonado e talvez ainda seja (e talvez sempre serei). E talvez por isso falar sobre ela sempre seja um desafio – seu cheiro na verdade são vários: do rosto, da nuca, dos braços, do espaço entre os dedos dos pés, do sexo, das raízes capilares, da respiração, um cheiro que permanece em mim por dias depois de nossos encontros e que me causa uma dependência desesperadora e, de certo modo, infantilizante – sim, admito que tenho vontade de chorar quando, ainda possuído por suas-minhas fragrâncias, pressinto seus afastamentos, suas desaparições. Consolo-me da catástrofe que sempre experimento com a impossibilidade de permanência da mulher-com-forte-sensibilidade-tátil, que também pode ser chamada de mulher-com-o-rosto-mais-lindo-que-já-vi, que também pode ser chamada de mulher-logos (tínhamos no começo de nossa relação conversas que duravam sete, oito horas), que também pode ser chamada de mulher-sem-a-qual-minha-vida-não-tem-nenhum-sentido-verdadeiro-e-profundo, consolo-me da horrível catástrofe que sempre experimento com a impossibilidade da permanência dela em minha vida servindo-me da mulher-esportista; a esportista é uma mulher saudável, longilínea, uma mulher com os traços do rosto francos e arrogantes (gosto não de mulheres com a expressão facial insolente, agressiva ou debochada, mas, sim, de mulheres com um ar verdadeiramente arrogante, arrogância geralmente enraizada numa soberania, soberania geralmente enraizada numa noção verdadeira da própria superioridade, uma superioridade eugênica, quase soviética, quase nazifascista, eu diria). A mulher-atleta tem os cabelos lisos e volumosos e é atraentemente nariguda. É dada a jogos com regras claras. É, resumidamente, uma simplificadora do real. O problema é que o efeito dela sobre mim é curto e sua presença só funciona quando faz contraste com alguma recente desaparição da mulher-que-me-dá-vontade-de-chorar-quando-vai-embora (um outro nome possível para a mulher-absoluta, a mulher dos cheiros múltiplos que também são meus). Um detalhe sórdido sobre a mulher-atleta, que íntima e inconfessadamente contabilizo a seu favor: ela é estéril, com menos de trinta anos teve de fazer uma histerectomia radical. Quando sinto a tentação de avaliá-la depreciativamente e de, talvez, descartá-la, penso que a mulher-atleta é a única mulher que posso despreocupadamente foder sem camisinha. (Em contraste, a mulher-que-me-dá-vontade-de-chorar-quando-ameaça-desaparecer é preocupantemente fértil, sei que é, nossas fantasias eróticas muitas vezes envolvem fecundação e isso quase sempre é uma pista da realidade biológica de um casal; daí que o sexo com ela, que também pode ser chamada de mulher-da-minha-vida-e-da-minha-vida-eterna-se-houver-uma, é um sexo sempre rigorosamente disciplinado, ao menos o sexo genital.)
Um detalhe curioso sobre a atleta, a nariguda gostosa, a arrogante, a simplificadora do real: não tenho registro olfativo dela.
Há ainda outras: aquela garçonete-peituda com sotaque nordestino (corrijo: com uma prosódia horrorosa de cantora de forró); aquela mulher-intrinsecamente-deselegante de quem eu até gosto (gosto como gosto de nuggets com molho barbecue do McDonald’s), mas com quem eu odiaria ser visto em público; aquela que é maconheira demais e que usa camisetas estampadas com trocadilhos do tipo Sou Frida, mas não me Khalo; aquela que é maconheira também, mas que acha que é de direita (sugeri uma vez que ela fizesse uma camiseta verde e amarela com a frase maconheira de direita); aquela ex-beldade que acabou de fazer cinquenta e sete anos e, não só por isso, mas por isso também, está ficando insuportavelmente amarga, dada a ideações suicidas, etc.; aquela que entope a rede social com fotos dela fazendo dança do ventre; aquela cuja linguagem é eivada de palavras horrorosas como níver, facul, miga, miguxa, sofrência, Sampa, e de clichês medonhos como eu gosto de viajar para conhecer novas culturas, se não for para me fazer voar não tire meus pés do chão, etc.; essas, porém, habitam uma espécie de vala comum na minha topografia afetiva.
Não me interesso por nada que essa mulher que está comigo, agora, aqui no meu apartamento, diz. Ela está dizendo uma frase que tem a palavra desambiguação. Não sei por que me detenho nessa palavra, desambiguação. Talvez pelo modo como as vogais e as consoantes escoam pela voz dessa mulher, que tem uma beleza fria e um odor neutro e um corpo que, embora seja disciplinado pela ginástica, no fundo é medíocre – uma mulher com quem fazer sexo, para mim, é apenas exercer uma função fisiológica baseada em esforço e alívio, algo que me dá um efeito levemente desintoxicante e esvaziador. Talvez por isso, e por algumas outras coisas, coisas oriundas de cálculos e raciocínios tão mesquinhos que não merecem ser mencionados (não se trata de dinheiro, por sorte nasci numa família com excelente situação material), talvez por isso tudo eu tenha decidido me casar com ela. Casamento, assim como nascimento, assim como doença, assim como morte, assim como o formato das sobrancelhas que você tem, assim como os filhos que você porventura gere, pertence ao reino da fatalidade e da arbitrariedade cósmica, não da escolha deliberada e consciente; percebi que deveria me casar com ela como alguém que toma consciência de que tem um câncer incurável; há algo de “bom” nessa minha “escolha” por ela: acho-a tão insignificante que nosso casamento provavelmente nunca vai degenerar em ódio; não tenho como me decepcionar com uma pessoa de quem nada espero; ela é bonita (beleza fria), tem uma boa tonicidade muscular (apesar do corpo fundamentalmente medíocre), é “inteligente” (poliglota, excelente desempenho acadêmico, etc.), então é razoavelmente provável que iremos gerar filhos bonitos, sem tendência à obesidade ou à calvície (nem ela nem eu temos carecas em nossas genealogias) – sim, iremos gerar um bando de idiotinhas superinteligentes que aos vinte anos estarão fazendo administração no Insper e que logo entrarão na Unilever como trainees e que serão superfelizes e que antes dos trinta anos já estarão recebendo salários astronômicos e que terão uma ampla vivência internacional e que se casarão com garotas igualmente idiotinhas e superinteligentes e que no futuro me darão netinhos provavelmente idiotinhas e provavelmente superinteligentes também. (Há, há.) Ela, que acabou de dizer a frase da qual destaquei a palavra desambiguação, está bastante feliz com a perspectiva do casamento. Eu, curiosamente, também estou feliz, muito feliz. Logo, minhas únicas esperanças daqui pra frente estão na infelicidade, no tormento, na incerteza, no caos moral, na imensa provisão de catástrofes de que disponho ao me relacionar com as outras, todas as outras. A única certeza que tenho sobre mim é que as outras sempre existirão. Sempre.