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(contos, ficção curta)
eduardo haak, 2021
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Miroslav está deitado, esperando a anestesia do dentista passar. Entorpecimentos localizados desse tipo sempre o fazem se sentir absolutamente incapacitado. O dia, quarta-feira, está seco e radiante. Um barulho de furadeira vem de algum apartamento não muito acima do dele. Esse tipo de ruído nunca o incomodou, ao contrário de ruídos percutidos e intermitentes. Seu telefone, que está sobre um antigo latão de gasolina transformado em criado-mudo, emite o sinal sonoro de que chegou mensagem. É Mariana, que diz que é pra ele pegá-la em casa às vinte e trinta. Embora saiba que Miroslav tem fobia de hospital, Mariana decidiu arrastá-lo à UTI onde seu marido está em coma induzido. Ela diz que quer se vingar de uma série de humilhações conjugais, beijando Miroslav na frente do sujeito, ainda que com ele em coma.Miroslav se levanta e fica parado, apalpando a parte anestesiada do rosto. A sala de seu apartamento não tem nas paredes qualquer imagem, quadro, pôster, etc., exceto a palavra przyjemnosc, escrita a lápis em letra minúscula perto do batente da porta principal. Essa palavra significa volúpia na língua nativa de seus pais, o polonês. Também não há livros físicos ali, tendo Miroslav no começo do mês depositado na caçamba de lixo reciclável do prédio os últimos cento e poucos volumes que ainda guardava. Ele caminha ao banheiro e abre o nécessaire. Avalia que sobraram poucos comprimidos de naproxeno sódico, calça-se e vai à farmácia comprar. Sobe a Conselheiro Brotero e, como sempre, conta até a janela do sétimo andar de um prédio cuja fachada é feita de pastilhas azuis e brancas. Engole a seco após fazer essa contagem. Pensa em Mariana, seios, dorso, torso, o efeito opioide que sente ao mergulhar o rosto em seus cabelos e inalar o odor resinado que sempre existe ali. Ao pedido que ela lhe fez, para acompanhá-la à UTI e beijá-la na frente do marido, Miroslav podia ter dito simplesmente que sim ou que não. Mas ele pressentiu que o alvo real daquela encenação não era o marido, pressentiu que Mariana queria ser vista sendo beijada, por certo por alguém da equipe médica, pressentiu que seu objetivo era atrair ou afastar algum pretendente amoroso, já que aquela encenação servia para as duas coisas, “afaste-se, já tenho meu homem”, “ei, que tal vir aqui brigar por mim, saindo no braço com esse sujeito que está me beijando?”. Depois, foi só Miroslav fazer uma breve e simples investigação, etc. Em se tratando de discernir os motivos por trás dos atos de uma mulher, apostar no motivo mais trivial será sempre a aposta certa.
Miroslav entra em casa, vai ao banheiro e guarda o naproxeno no nécessaire. Volta à sala, pega o telefone e digita à Mariana uma mensagem que contém um simples nome próprio, duas palavras que, ele sabe, terão amplo poder de desconcertá-la. Desliga o telefone, coloca-o sobre o latão criado-mudo e deita-se no sofá. Lembra-se, então, de que trancou à chave a porta da rua. Levanta-se, destranca a porta e volta a se deitar. Dentro de no máximo duas horas o efeito do anestésico terá passado totalmente. A porta da rua está aberta e ele sabe – sabe – que ela virá, e atravessará o portal da volúpia – volúpia, ainda que oblíqua e espalhada pelos poucos caracteres de um idioma que, talvez, não seja o idioma real nem dela, nem dele..
Até os quarenta anos Ofélia nunca havia tido a consumação sexual chamada orgasmo. As carícias íntimas masculinas (e ocasionalmente femininas) lhe agradavam, mas de modo difuso. Por ser especialmente bonita, as pessoas que a conheciam costumavam lhe atribuir uma vida erótica caracterizada pela plenitude e pela variedade. Nenhuma dessas pessoas cogitaria que Ofélia pudesse ser uma mulher sexualmente disfuncional.A busca pela origem de sua disfunção foi caracterizada por diagnósticos hipotéticos que nunca levaram a um tratamento eficaz (diagnósticos hipotéticos, já que os exames solicitados pelos especialistas que Ofélia consultou sempre redundaram em não apontar nada de errado em seu organismo). Igualmente fracassadas foram suas incursões por psicólogos, terapeutas sexuais e instrutores de kundalini yoga.Às vésperas de completar quarenta e um anos Ofélia foi ao dentista fazer a avaliação semestral. O doutor C. Cerveira tirou uma radiografia panorâmica e disse que ela teria de extrair os terceiros molares, que estavam inclusos. A cirurgia transcorreu sem maiores incômodos, apesar da apreensão inicial de Ofélia (arrancar quatro dentes com um dentista chamado Calígula, etc.). Foi então que Ofélia, durante os dias de convalescença e início da cicatrização, teve sua primeira descarga orgástica. Essa capacidade orgástica, porém, só se manteve até a cicatrização das gengivas se completar.Um novo périplo pelos mesmos especialistas que Ofélia já consultara não levou a qualquer esclarecimento – nenhum médico soube explicar por que um caso de anorgasmia foi temporariamente curado por uma cirurgia de extração de dentes.Ofélia queria provar de novo aquela sensação efervescente, aquela angústia deliciosa, e para isso experimentou ir a um daqueles dentistas que simplesmente fazem o que o paciente pede, um tiradentes tradicional que lhe extraiu um dos segundos molares da arcada inferior. Nos onze dias que durou sua capacidade orgástica após o procedimento exodôntico Ofélia fez sexo com cinco homens diferentes e atingiu o clímax sessenta e uma vezes.A vida de Ofélia então passou a ser o cálculo de quantos dias ainda dispunha como mulher capaz daquele consummatum est: restam-me dezoito dentes naturais (os dentes extraídos foram sendo substituídos por implantes), portanto terei mais ou menos cento e oitenta dias. Aos quarenta e seis anos (e aproximadamente mil e duzentos orgasmos) lhe sobravam na boca apenas quatro dentes naturais, ou seja, a possibilidade de quatro períodos orgásticos que durariam, cada um, pouco mais de uma semana. Ofélia estava passando férias em Playa Hermosa, no Uruguai, quando conheceu Esdras.Esdras saíra do Brasil e se estabelecera no país vizinho já havia quase vinte anos. A primeira conversa de Ofélia e Esdras durou quarenta minutos, e a segunda conversa deles durou quase oito horas. Foi uma daquelas conversas que acontecem duas ou três vezes na vida de uma pessoa, em que tudo que é fundamental é contado ao interlocutor. Ofélia contou sobre sua estranha disfunção e disse estar insegura de ir para a cama com Esdras naquele momento. Que para gozar fazendo sexo ela teria de arrancar um dos quatro dentes naturais que lhe restavam. Que talvez fosse melhor que eles jamais tivessem se conhecido, que o amor invariavelmente só complica as coisas. Esdras disse, não se preocupe, vamos apenas ficar juntos, no escuro, ouvindo nossas respirações. Os dois foram para o quarto e se deitaram. Ofélia então experimentou se deixar ser penetrada e, ao ouvir no escuro a respiração de Esdras misturada à própria respiração, teve um orgasmo tão forte que a única analogia que lhe passou pela mente foi a de mil dentes sendo arrancados de uma só vez..
Meu primo Gato vendeu o Alfa-Romeo 2300 e comprou um Monza SL/E, vermelho. O Alfa-Romeo, 1977, tinha sido do meu pai. Foi dentro do Alfa que, ano passado, fiz sexo pela primeira vez. Eu e o Gato estávamos na lanchonete Mil Milhas, em Interlagos, e pegamos lá duas fulanas. Ficamos rodando com elas e acabamos entrando na rua que dá acesso ao Clube de Campo do Castelo, uma rua erma, sem asfalto, onde há apenas campos de futebol de várzea e terrenos baldios. Depois fomos levar as mulheres até onde elas moravam, um lugar superlonge, parecia que não chegava nunca. Na volta o Gato me perguntou se eu tinha dado uma mijadinha depois de tirar o pau de dentro da mulher. Eu disse que não e perguntei por quê. Gato respondeu que quando a gente mete numa fuleira tem que mijar depois, que a urina limpa a uretra, que fazendo isso dá pra evitar uma gonorreia, oitenta por cento de chance de não pegar. Pedi então para ele parar o carro numa rua com pouco movimento e postei-me em frente a uma árvore e fiquei ali, esperando que o jato de urina viesse, mas nada do jato vir, então o cachorro de uma casa começou a latir e eu pensei, cala a boca, cachorro imbecil, olha que se você não parar eu vou até aí e mijo nesse seu focinho latidor, então o vigia noturno da rua apareceu com o trinta e dois na mão e eu disse pra ele, ô meu chapa, tô meio no aperto aqui. O sujeito se afastou e tentei mais um pouco fazer o jato de urina sair, mas não adiantou, não veio nada, então entrei no carro e seguimos até o Itaim e paramos no Milk & Mellow e eu bebi duas garrafas de Coca-Cola, uma em seguida da outra, e fui ao banheiro para ver se finalmente saía alguma coisa, mas nada, nada de mijo, aí eu cismei que meu pau já estava começando a arder, os gonococos fazendo a festa, proliferando-se à razão de dois, quatro, oito, duzentos e cinquenta e seis, dezesseis mil cento e oitenta e quatro, então eu saí do banheiro e disse ao Gato, vamos procurar uma farmácia. Rodamos pelo Itaim todo e não achamos nenhuma farmácia aberta, então fomos até uma na Nove de Julho, lá perto dos túneis, uma que fica aberta vinte e quatro horas. Comprei camisinha e permanganato de potássio e voltamos para o Itaim e entrei correndo em casa e fui ao banheiro e enchi uma camisinha com água e joguei o permanganato na água e sacudi bem e enfiei o pau na camisinha cheia daquele líquido lilás e fiquei andando pelo banheiro, tentando me convencer de que aquilo ia mesmo fazer efeito e cogitando que talvez tivesse sido melhor eu já ter tomado uma benzetacil, aquela injeção de penicilina que dizem que dói pra caralho. Aí essa coisa de sentir meu pau enfiado num espaço apertado e úmido começou a me dar tesão e o pau endureceu dentro da camisinha e eu fiquei com vontade de bater uma e me sentei na privada e tirei o pau de dentro da camisinha e comecei a friccioná-lo, olhando para a camisinha cheia de água e permanganato de potássio, que eu segurava com a mão esquerda, então comecei a imaginar que aquela camisinha era um seio, sim, a forma arredondada era mais ou menos análoga a de um seio, o modo como a coisa balançava também, boing, boing, boing, então eu me lembrei dos gonococos, da benzetacil, da vez em que o Gato foi contaminado por uma mulher que nem era vadia, quer dizer, não era dessas vadias de rua ou de casa de massagem, dessas que trepam por grana, parece que a mulher era casada com um oficial da marinha que estava sempre fora de São Paulo e que então o Gato ia comê-la no apartamento dela, uma vez eu disse, cara, você é maluco, você acha que os porteiros do prédio não contam tudo pro oficial-corno?, se bobear os baianos até trabalham para o SNI, como informantes mesmo, aí o Gato disse, SNI porra nenhuma, eu estava pensando nessa história e pensando que o período de incubação da gonorreia pode durar até uma semana, mas eu estava pensando também na Tássia Camargo e na Carla Camurati e estava olhando para a camisinha-seio e estava friccionando meu pau enquanto pensava na Tássia Camargo, na Carla Camurati, na Aldine Müller, na Nicole Puzzi, na Helena Ramos, na Maria Zilda, então eu pensei, fodam-se, fodam-se os gonococos..
Estou sozinho numa casa que deve ter uns setecentos metros quadrados. Vim me esconder aqui por causa de uma mulher.Primeiro ela disse que ia fazer macumba com terra de cemitério pra me matar, depois disse que estava procurando na deep web um matador de aluguel pra fazer o serviço.
A casa é de um amigo que passa a maior parte do tempo no Rio de Janeiro. Praticamente não saio dela, só saio de manhã pra correr um pouco no Parque Villa-Lobos. No restante do dia eu vejo uns filmes e leio uns livros.
Termino de almoçar e decido abrir a porta balcão de uma varanda, então o alarme antifurto da casa dispara. Não faço a menor ideia de como desligá-lo e penso que o alarme, com certeza, é desses que imediatamente acionam a polícia. Penso que se eu não conseguir localizar meu amigo no Rio, sim, emprestei a casa pra ele, serei tratado como suspeito de arrombamento, furto, etc.
Pego meu carro e vou até a agência de publicidade onde ela trabalha e fico esperando até que ela volte do almoço. Vejo-a finalmente vir caminhando, acompanhada de uma colega. Ando em sua direção e lhe dou um tapa no rosto. Ela cai e me olha com perplexidade.
Digo, macumba porra nenhuma, o.k.?, matador de aluguel porra nenhuma, o.k.?
A colega pega o celular e começa a filmar e eu digo, ótimo, é pra filmar mesmo, depois põe o título, como tratar uma mulher que tem o hábito de fazer ameaças de morte e intimidações.
Viro-me e vou caminhando na direção do carro, então Paola, que ainda está no chão, começa a chorar e diz, Mauro, me perdoa!, e eu giro o tronco e digo com a mão em concha ao redor da boca, perdoa é o caralho, e vá à merda, você.
A sensação que isso dá é muito boa, mandar à merda uma pessoa que merece isso, ir à merda.
Eu estava pensando na palavra derrelição, que significa desamparo, e estava sentado no café com um ar distraído, mas eu não estava distraído, estava decorando um trecho do livro que estava lendo, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, eu estava repassando mentalmente essa frase e devia estar com aquela expressão vaga no rosto, com os olhos fixados no vazio, quando percebi o sujeito me encarando, um desses sujeitinhos de boné e peito estufado com postura de cão territorial, uma postura de rottweiler olhando fixamente para um potencial invasor do seu espaço, um desses sujeitos cúpidos, gananciosos, ferozes, devoradores e animalizados que provavelmente vão acabar se dando muito bem no mundo corporativo das multinacionais e dos bancos. Então ele me disse, que quê tá olhando? E foi só aí que eu percebi que o sujeito estava acompanhado de uma mulher, quer dizer, eu até havia reparado antes, mas é claro que eu não estava encarando a mulher, que era bonita e tinha meio jeito de cadela no cio, eu não gosto de confusão e sei que esses sujeitos são doidos pra arrumar treta e logo sair dando porrada, eu conheço bem o tipo, na minha faculdade só dava esse tipo de sujeito, esses arrivistas cheios de testosterona, geralmente vindos da classe média baixa, esses arrivistas que não deixam qualquer dúvida de que hão-de-vencer e que por isso sempre pegavam as garotas mais bonitas e gostosas de lá, algumas eram putas de luxo, todo mundo sabia, mas e daí?, aquilo era uma latrina mesmo, uma dessas merdas de faculdade que os alunos assinam a lista de presença e depois vão para o bar beber, foi por isso que acabei largando, por isso e porque não estava dando pé pagar as mensalidades, na época eu já trabalhava como passeador de cachorro e esse trabalho não dá muito dinheiro, sair por aí segurando a coleira de cinco ou seis cães, esperar os bichos mijarem e cagarem e depois recolher da calçada aquele excremento todo, minha mãe recebe uma miséria de aposentadoria, então minha renda praticamente toda vai para as nossas despesas domésticas, pão, açúcar, batata, farináceos, farelos, carboidratos simples de rápida absorção, fora os remédios dela e os meus, que eu preciso tomar por causa da epilepsia, alguns desses remédios que eu tomo até são baratos, mas alguns são caros, faz anos que não tenho nenhuma crise, hoje o sujeito pode ser epilético e ter uma vida totalmente normal, é só tomar os remédios direitinho, coisa que eu nunca deixo de fazer.Como eu estava dizendo, o cara cismou que eu estava olhando para a namorada dele e disse, que quê tá olhando, hem, ô babaca?, então ele se levantou e veio até mim e aproximou o rosto do meu e bateu com a testa no meu nariz. A pancada me deu uma dor aguda e me fez sentir um gosto amargo no céu da boca e a namorada do cara segurou o braço dele e disse, para, Sérgio!, mas eu notei que no fundo ela devia gostar de ver o sujeito bancando o machão, a voz dela estava obviamente excitada, como quando uma pessoa está com vontade de rir mas tenta disfarçar, então os dois foram embora, o rottweiler e a cadelinha no cio, e eu fui até o banheiro lavar o rosto, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de ilusões, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto em teu peito, e também seu deserto, o trecho do livro que eu estava decorando me veio inteiro, então eu saí do café e fui andando até a minha casa, andando e pensando. Não estava sentindo ódio, ou melhor, não estava sentindo ira, ira alguma. Quando eu era mais jovem eu odiava, ficava babando, estrebuchando de raiva, mas isso é porque eu não sabia pensar, pensar com clareza e método, eu me decepcionava com alguma coisa e, pronto, ficava lá, todo cheio de ódio impotente, me decepcionava porque aquelas mulheres lindas do tipo que acabam se casando com libaneses ricaços, turcos cheios da nota, etc., nunca se interessavam por mim e, pronto, ódio-ódio-ódio, sim, por que as únicas mulheres que eu consigo pegar são essas mocorongas feiosas de faculdade de letras?, sabe o tipo?, é, aquelas meninas com aquelas bundinhas melancólicas, envergonhadas, minúsculas, enfiadas pra dentro, sim, parece que essas meninas vivem com pavor de levar um chute no meio do cu, mulher tem que ter uma bunda não necessariamente grande, mas que sugira generosidade, uma bunda que pareça dizer ao mundo, vinde a mim, etc., eu ficava pensando essas coisas e aos poucos meu pensamento foi deixando de ser só um monte de frases soltas e desajeitadas e foi se tornando um pensamento claro e metódico, perceber essa minha evolução foi uma das maiores alegrias que já tive, o sujeito pode ser feio, pobre e epilético, mas se ele sabe pensar com clareza e, consequentemente, sabe com o que realmente pode contar, as possibilidades dele praticamente se igualam às de qualquer bacana.Não tive dificuldade de descobrir algumas coisas sobre o sujeitinho de boné e peito estufado que bateu com a testa no meu nariz. Sei onde ele mora e sei os trajetos que ele faz a pé – hoje, por exemplo, ele vai passar por uma rua de pouco movimento. Cuido do cane corso de uma senhora viúva, levo o bicho para passear, o cachorro na verdade era do marido dela, a velhota não teria a menor condição de segurar aquela fera de quase sessenta quilos numa coleira, ela sempre me diz, o Boris adora você, adora!, rebatizei o Boris como Lavrenti Beria quando comecei a treiná-lo para que ele obedecesse aos meus comandos, Lavrenti Beria, para quem não sabe, era o chefe de polícia secreta do Josef Stalin, etc., já antecipei também todas perguntas que a polícia poderá me fazer, como foi que isso aconteceu?, ah, eu sou passeador de cães e levei esse cão pra passear e aconteceu de eu ter uma crise epilética, aí, quando recobrei a consciência, ele havia atacado e matado o rapaz. Meu pensamento é claro e metódico, meu temperamento é equânimo, palavra que quer dizer desapaixonado, logo minhas ações todas estão fadadas ao sucesso.
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Murilo está dizendo que viu hoje um Electra das Lineas Aereas Paraguayas descendo em Congonhas com um dos motores parados. Murilo é obcecado pelo Paraguai e tem na carteira uma cédula de cinco guaranis, que é o dinheiro que circula no Paraguai. A imagem que aparece na cédula de cinco guaranis é a de uma mulher com jeito de cigana, segurando um vaso, la mujer paraguaya, como está escrito no canto da cédula. Estamos na sala do apartamento do Murilo, uma sala cheia de vasos com samambaias, rendas portuguesas, antúrios. Estamos bebendo uísque Ballantine’s e fumando cigarros John Player Special de uma embalagem cilíndrica, de plástico, onde cabem cem cigarros. O disco que está tocando no aparelho de som é o Breakfast in America, do Supertramp. Os pais de Murilo estão viajando e nós estamos agora conversando sobre as pessoas que ou-temos-certeza, ou-desconfiamos que são informantes do SNI. Aquele mulato pernóstico que vive no Gimba e que toda semana aparece com uma moto ou um carro diferente: quase-certeza. Aquela coroa que é corretora de imóveis e que usa um coque estilo Eva Perón e que volta e meia está aqui no prédio e que todos nós desconfiamos que deve render uma fodaça: é-possível-que. (Eu já descasquei altas bronhas pensando nela, imaginando ela chupando meu pau enquanto eu desfazia aquele coque Eva Perón e apalpava suas tetas incrivelmente firmes para uma mulher que deve estar beirando os cinquenta.) O sujeito que mora no 102, o que fez CPOR e que ninguém sabe direito no que trabalha: quase-certeza-absoluta. Aquele outro sujeito meio com voz de anão que costuma aparecer no fliperama da Rua Iguatemi e que disse que tinha um esquema pra conseguir dispensa do serviço militar, cem dólares por cabeça: talvez-sim. Meu primo Gato, que embora viva de fazer saques no cofre do padrasto (cofre onde o padrasto guarda as propinas que recebe como fiscal do ICMS) e que também tire umas granas comendo bichas endinheiradas que pegam rapazes bonitos em fliperamas, sim, é possível que o Gato seja informante do SNI, porque ele, além de inescrupuloso, é ganancioso.Decidimos passar uns trotes telefônicos e ligamos para o careca comunista, que é maestro e é parente distante do Murilo. O Murilo sempre conta histórias sobre esse parente – diz que ele costuma fazer orgias num hotel no Guarujá, diz que ele é giletão, diz que a própria mulher come ele com um pinto de plástico, etc. O maestro atende o telefone e o Mug, fazendo uma voz áspera e marcial, identifica-se como major Venceslau, do centro de informações do exército, e diz que o maestro está intimado a comparecer à sede da segunda região militar para prestar esclarecimentos sobre contrabando de material pornográfico, material esse que contém fotos de pederastia, etc. Mug desliga o telefone gargalhando, diz que o maestro mandou ele foder-se, e assim que Mug põe o aparelho no gancho o aparelho toca e ele atende, mas quem está do outro lado da linha permanece em silêncio enquanto o Mug diz, alô?, alô?, então a pessoa desliga e o Mug põe de novo o aparelho no gancho e cinco minutos depois o telefone toca de novo e mais uma vez a pessoa que está do outro lado da linha não diz nada, enquanto o Murilo, que foi atender dessa vez, diz, e aí, sua bichona, não vai falar?, quer levar uma trolha no meio do cu?As duas ligações atiçam nossa paranoia, quem será que foi?, estranho acontecer isso logo em seguida ao trote, aí o Murilo diz que foi coincidência e o Mug diz, é, pode ser que seja coincidência, mas pode ser que não seja, esse seu parente aí, o careca comunista, não é metido com gente importante?, e o Murilo responde, metido com gente importante da TV e do meio artístico, não com militares, o apelido dele é careca comunista, é só pensar com um pouco de lógica. Aí deliberamos mais um pouco e concluímos que alguém ter o apelido de careca comunista não significa nada, que carecas comunistas podem perfeitamente trabalhar para o SNI como informantes ou até coisa mais graduada. Bebemos mais uísque e fumamos mais John Player Specials e decidimos ir dar uma volta de carro e vamos até Congonhas e ficamos lá, perambulando, aí compramos um maço de Hollywood e uma caixa de fósforos e o Mug se lembra daquela história do hangar da VASP, que tinha um avião antigo lá, a carcaça de um Caravelle que servia de motel para menores de idade, que o Anuarzinho disse que foi lá descabaçar com uma puta e que a mulher teve um ataque de pânico porque o avião estava cheio de baratas e que por isso o Anuarzinho não descabaçou naquela vez, e eu penso que na última vez em que estive aqui em Congonhas eu vi os caras da banda A Cor do Som e vi uma menina que estudou comigo no Cristo Rei, a Stella-Stellá, pedindo autógrafos para o Dadi e o Mu, então vamos embora de Congonhas e na Rubem Berta um carro da polícia emparelha com a gente e o tira que está na janela nos aponta aquele farol de mão e eles mandam a gente encostar e somos revistados e os caras fazem a maior onda, dizendo que vão encaminhar os menores – eu e o Mug – para a Febem, aí, quando a gente já está bem com o cu na mão o policial com pinta de chefe diz, vai, sumam daqui, e vão direto pra casa, hem?, rua essa hora não é lugar pra criança, então voltamos para o Itaim e o Murilo me deixa na minha casa e eu entro e vejo que meus pais estão dormindo. Subo para o meu quarto e me deito, mas minha cabeça não para de funcionar, parece que tem uma britadeira dentro dela, então me levanto e vou até o banheiro e pego um Valium 10 mg na frasqueira da minha mãe e engulo o comprimido e vou até uma das extensões e tiro o telefone do gancho e olho durante um tempo para o aparelho e observo os números meio manchados de tinta por causa do hábito que as pessoas têm de discar o telefone usando canetas esferográficas e sinto que ao tirar o telefone do gancho estou me livrando de uma ameaça difusa, inespecífica, mas não por isso menos aterrorizante, então vou para o quarto e me deito e espero que o Valium logo faça efeito e que me extinga por umas oito, nove horas.
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