Ela me diz que, se pudesse escolher, nunca mais iria dormir, só para aproveitar ao máximo minha presença, depois de todo tempo que perdemos, depois de todas dificuldades que enfrentamos para, enfim, ficarmos juntos.Digo-lhe o mesmo, que se eu tivesse três pedidos a fazer a um daqueles gênios da lâmpada eu pediria para nunca mais ter sono, pois assim nunca mais desperdiçaria sequer um minuto da presença dela.
Ela me abraça, deposita a cabeça no meu ombro e diz, ó, eu vou fechar os olhos, só pra descansar um pouco, não vou dormir não, tá? Digo que vou fazer o mesmo, fechar os olhos só pra descansar, sem dormir.
Evoco, de olhos fechados, a vez quando ambos ainda éramos casados com nossos respectivos cônjuges e que fizemos um jogo erótico em que ela permaneceu sentada e eu fiquei em pé, atrás dela, acariciando com meu órgão genital os dois lados de seu pescoço, e que ela, toda vez que percebia minha glande tangenciando seu maxilar, girava o pescoço e tentava alcançá-la com a boca, e que então uma hora ela disse, chega, não estou aguentando mais, me dá logo isso aqui, ô desperdício, sim, a palavra que ela usou foi essa, desperdício, então eu passei para o outro lado do pescoço dela e continuei com aquela peculiar e disciplinada carícia e disse assim para ela, desperdício?, oras-oras, depende.
Acordamos de madrugada com um barulho insistente e intermitente que demoro um pouco para decifrar que é o alarme de incêndio do hotel.
Saímos do quarto e atravessamos o corredor sob a chuva espargida pelos sprinklers. Chegamos à escada de emergência, que está tomada por uma fumaça preta, fuliginosa. Descemos o primeiro lance, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, tentando não respirar, mas eventualmente respirando aquela fumaça insuportavelmente quente, que arde em nossos narizes, laringes e brônquios.
Uma equipe médica nos atende e somos levados a um hospital, aliviados por termos conseguido escapar do incêndio e por tudo estar o.k., sim, não sofremos queimaduras, só estamos tossindo um pouco por causa da fumaça preta e quente, então o médico vem falar conosco e diz que teremos de ser submetidos a uma intubação endotraqueal, que nossas vias aéreas sofreram queimaduras, que ainda estamos conseguindo respirar porque o edema ainda não se formou, mas vai se formar, o edema da glote, uma reação normal do organismo ante esse tipo de lesão.
Pergunto quanto tempo ficaremos intubados e sedados e o médico diz que isso pode variar (uma semana? duas? a eternidade toda?), mas que não é pra eu ficar preocupado. Um enfermeiro da equipe já está injetando fentanil em mim e eu olho para ela, que também está sendo preparada para a intubação. Logo sinto o medicamento fazer efeito e resisto o quanto posso ao inexorável processo de narcose, colocando nela – nela, nela, nela, nela, nela – toda minha atenção, conservando sua presença em minhas retinas, cogitando que a presença percebe, angustiada, a ausência, mas que a ausência
sábado, 5 de dezembro de 2020
PRESENÇA, Eduardo Haak
EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak
extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)

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