Viemos passar uns dias em Santos. Renata está desempregada e eu desmarquei meus pacientes, não muitos, desde que tive o enfarte não fiz mais cirurgias e passei a trabalhar no máximo vinte horas por semana. Estamos agora na sala do apartamento olhando para a tela da TV, vendo um filme que eu sempre disse que tinha vontade de ver com ela, mas noto que Renata está um pouco impaciente e sinto-me decepcionado com o fato de que o filme não está fazendo nela o efeito que eu supunha que fosse fazer. Puxo algum assunto para desobrigá-la de prestar atenção nas imagens que aparecem na tela e passamos a conversar, enquanto o filme fica lá, perdurando como uma realidade subliminar e secundária à nossa.Nossa conversa tem uma longa duração e várias vezes me percebo simplesmente contemplando o rosto de Renata, seus olhos claros e amplos, seu nariz geométrico-escaleno, os cabelos lisos e cinemáticos, a riqueza harmônica da voz. (Qual o sentido dessa perfeição toda?, eu me pergunto. Qual o sentido dessa presença e da profunda impressão que ela sempre me causa? E quanto tempo isso tudo vai durar?) Levanto-me e vou à janela e digo, nossa, baixou a maior neblina. Renata se levanta do sofá e vem até a janela e diz, caramba, então ela sugere que a gente vá andar no calçadão da praia e eu penso um pouco e digo, o.k., vamos.
A madrugada está com uma temperatura amena e vamos caminhando pela Bartolomeu de Gusmão até o canal três e a visibilidade que temos é no máximo de cinco metros e eu penso em dizer, princesa, acho que nunca vou me esquecer desse nosso momento, aqui, mas cismo que dizer isso vai soar como uma confissão de vulnerabilidade e eu não quero, agora, demonstrar vulnerabilidade, talvez porque eu esteja me sentindo vulnerável mesmo. Voltamos ao canal quatro e observo os contornos difusos da igreja neogótica e Renata diz, vamos andar um pouco na praia, na areia. Sigo-a e logo percebo que visão ali está mais limitada ainda e abraço Renata pelas costas e ela, dando-se conta de que estamos protegidos por uma considerável invisibilidade, me puxa para dentro de si. A ação em que nos engajamos é agônica e a cada avanço pélvico que executo parece que quero me ocultar dentro do corpo dela – eu noto que meu impulso, agora, é semelhante ao impulso que me levava àquelas brincadeiras infantis em que me esconder dentro de um armário bastava para me apartar do universo e de tudo o que um universo pode ter de incompreensível e ameaçador.
sábado, 5 de dezembro de 2020
AMOR, Eduardo Haak
EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak
extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)

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