Quer começar?, pergunto.Acho que não. Começa você.
O.k. Vou falar daquilo que estávamos falando, que o homem quando é jovem busca uma mulher que seja cúmplice da expansão de suas possibilidades vitais, e quando é velho busca uma que seja cúmplice de seus declínios.
Hum. E que tipo de cumplicidade você busca em mim?
Não sei. Talvez eu não busque nenhuma.
Sério? Que chato. Pensei que eu fosse uma mulher significativa de alguma forma para você.
Talvez haja entre nós uma cumplicidade de declínios, só que disfarçada. Nós não somos propriamente velhos. Quantos anos você tem mesmo?
Eu tenho trinta e seis anos, senhor Eduardo. E você, consegue dizer sua idade em voz alta?
Não, está aí algo que está além das minhas forças.
(Rimos.)
Ou talvez haja entre nós, nesses nossos encontros, sempre tão... ritualizados, algo que não tenha a ver nem com a fuga do declínio vital, nem com a celebração da juventude e suas soberanias todas.
Hum.
Você entende isso, Mônica?
Não sei. Acho que entendo. Ou talvez não.
Então deixa eu ver se eu explico melhor... Bom, a maioria dos homens da minha idade está indo atrás de garotas de vinte e cinco anos, achando que elas podem aliviar a angústia que estão começando a sentir. Esses caras nem pressentem a fria em que eles estão prestes a se meter. Mulher de vinte e cinco quer casar, engravidar, montar apartamento. Nesse sentido minha ligação com você é uma cumplicidade de declínios, uma contemplação a dois das coisas que fizemos em nossas vidas e de aonde chegamos. Não temos um pacto, nem explícito, nem implícito, para ir atrás de novas conquistas, algo que caracteriza os casais jovens. No fundo, não acreditamos em mais nada, nem temos esperança de qualquer coisa. Talvez porque não sejamos exatamente um casal. Mas, em outro sentido, me encontrar com você sempre significa expansão, o que é o contrário de declínio.
Expansão.
É, expansão, expansão das minhas sensações, dos meus pensamentos. Cumplicidade de declínio, declínio mesmo, é o que talvez eu tenha com a minha mulher. A presença dela, a maneira como ela me olha, as coisas que ela diz, nada do que acontece entre nós, isso já há muito tempo, consegue escapar do eixo misericórdia-rancor.
Eduardo, não que isso tenha a ver comigo ou com meu interesse por você, mas por que vocês não se separam?
Por que a gente não se separa. Talvez porque a vida, no fundo, já tenha excluído a gente de suas benesses e seria cruel demais abandonarmos um ao outro numa espécie de waste land. Talvez porque precisemos, para não perdermos a noção do que é real, desse recíproco olhar acusador. Talvez porque uma das coisas que o tempo, e só o tempo, nos ensina é que não se viola uma cumplicidade, mesmo uma cumplicidade atroz. Talvez porque, sem essa sombra, o que você tem de iluminadora não fizesse nenhum sentido na minha história.
Hum.
Eu sei que pode ser meio difícil de entender. Eu já tive amantes burrinhas que sentiam, ó, ciúme da ligação que eu tenho com a minha mulher.
Claro, mulher em noventa por cento dos casos são criaturas imbecis. E o que você fez com essas amantes burrinhas?
O que eu fiz para me livrar delas?
É.
Inventei que estava com síndrome do pânico.
Olha só, que safadinho. Quer dizer que você não teve pânico nada?
Tive. Aliás, tenho. Ter pânico é como virar puta, uma vez puta, sempre puta. Eu só não tive mais crises. Mas sempre que preciso o pânico faz de mim um usuário legítimo da retórica do incapacitado.
(Rio. Ela ri também.)
É tão difícil assim entender, caramba? Por exemplo, posso dizer que o único momento da semana em que me sinto realmente bem é quando venho te encontrar. Isso significa que eu poupo você dos outros seis dias em que meu estado, de modo geral, está deplorável. Mas as mulheres em geral, sei lá, talvez por uma rixinha infantil com a-outra, fazem porque fazem até conseguir os sete dias só para elas. Sacrificam tudo, arrebentam com tudo, deixam tudo caindo aos pedaços, mas aí, ó, elas podem enfim dizer, eu tenho um homem meu, só meu.
Uma perguntinha, você não tem curiosidade sobre a vida íntima da sua mulher?
Você quer saber o quê? Se eu desconfio que ela tem amante, coisa desse tipo?
Isso, por exemplo.
Eu não desconfio, eu sei que ela tem um amante.
E isso não te incomoda?
Não.
Nem um pouco?
Me incomodaria se ele fosse um sujeito que não soubesse controlar a situação. Isso já aconteceu, e foi bem desagradável. Com o atual, não. É alguém de confiança. Sabe o que lhe cabe e o que não lhe cabe.
Deixa eu perguntar de outro modo, então. Você não sente nada com o fato de sua mulher ter um amante?
Deixa eu ver... eu sinto... eu sinto um pouco de repugnância. Só.
Repugnância?
É, repugnância. Todo casal visto de fora é um pouco repugnante.
Nós, inclusive?
Acho que sim.
sábado, 5 de dezembro de 2020
INTERLOCUTORES, Eduardo Haak
EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak
extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)

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