sábado, 5 de dezembro de 2020

ENCONTRO AMOROSO, Eduardo Haak

Estamos na cama e Doroteia fala que o único momento feliz que ela tem na semana é esse, quando vem me ver, aqui, nesse apartamento. Digo que eu também, só me sinto feliz quando a vejo.

Levanto-me e vou ao toalete, depois vou à sala pegar um charuto, que está no bolso do meu casaco, que está pendurado num extintor de incêndio da década de 1930. A sala não tem nenhum objeto exceto esse extintor, a única peça que sobrou de uma coleção que eu tive e da qual me desfiz já faz uns dez anos.

Um psicólogo famoso afirmou que o homem coleciona coisas para tentar neutralizar a angústia que sente por saber que a realidade é insopitável.

Etc.

Volto ao quarto e vou fechar a janela, está ventando muito, uma chuva bem forte está prestes a cair.

Doroteia, deitada de bruços, eleva um pouco a cabeça e pergunta se o carro dela continua lá, se não roubaram ainda. Olho para a rua e digo que sim, que o carro continua lá, estacionado debaixo de uma árvore.

Decido não acender o charuto, volto para cama e faço amor com Doroteia mais uma vez. Doroteia apelidou meu pênis de vetor, segmento de reta orientado. Ela tem talento para dar nomes, para perceber o traço singular de alguma coisa e ressaltar essa singularidade com uma palavra, um apelido, um apodo. Além de nomear meu pênis, Doroteia colocou numa das árvores aqui da rua o nome de árvore deprimida.

Etc.

Um ruído de impacto, de rachadura e de farfalho vem de fora e em seguida o apartamento fica sem luz. Vou à janela e vejo que a tempestade derrubou uma árvore, que esmagou exatamente o carro de Doroteia.


Pra vir aqui Doroteia contou alguma mentira ao marido e disse que voltaria para casa às dez da noite.

O carro esmagado debaixo da árvore é uma complicação que pode desencadear várias complicações: Doroteia chegar atrasada em casa, Doroteia chegar sem o carro, Doroteia ter de explicar ao marido por que chegou atrasada e sem o carro, etc.

Vamos para a sala discutir o que é melhor fazer. Sento-me no chão e acendo o charuto. Doroteia permanece de pé e fica andando de um lado para o outro.

Sugiro que ela volte de táxi e não diga nada, que é possível que por alguns dias o marido não perceba a ausência do carro dela na garagem do prédio.

Sugiro que ela diga que emprestou o carro para uma amiga.

Sugiro que ela diga ao marido que veio tomar um passe no centro espírita que tem aqui na rua – que ela estacionou o carro e mal tinha andado meio quarteirão quando ocorreu a queda da árvore.

Etc.

Um barulho de sirene vem da rua e Doroteia vai até a janela. Ela diz que é uma daquelas ambulâncias de resgate.

Descemos pelas escadas, visíveis por causa da luz de emergência, e chegamos à rua. Os bombeiros acabaram de tirar um homem aparentemente morto de dentro do carro e Doroteia diz, com os olhos arregalados e uma expressão de horror, é ele!, meu Deus, é ele!

Os bombeiros fazem os procedimentos de reanimação, que não surtem efeito, então um médico declara o óbito e o corpo do marido de Doroteia, sim, o marido de Doroteia, que sabia exatamente aonde ela havia ido, então pegou as chaves sobressalentes do carro e veio até aqui e entrou no carro e se escondeu no banco de trás pra fazer uma surpresa ou, quem sabe até mesmo, para matá-la, o corpo dele é coberto com aquela manta espelhada e eu vejo que Doroteia está chorando e eu respiro fundo e penso, puta que pariu.

EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak

extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)