Estamos na cama e Doroteia fala que o único momento feliz que ela tem na semana é esse, quando vem me ver, aqui, nesse apartamento. Digo que eu também, só me sinto feliz quando a vejo.Levanto-me e vou ao toalete, depois vou à sala pegar um charuto, que está no bolso do meu casaco, que está pendurado num extintor de incêndio da década de 1930. A sala não tem nenhum objeto exceto esse extintor, a única peça que sobrou de uma coleção que eu tive e da qual me desfiz já faz uns dez anos.
Um psicólogo famoso afirmou que o homem coleciona coisas para tentar neutralizar a angústia que sente por saber que a realidade é insopitável.
Etc.
Volto ao quarto e vou fechar a janela, está ventando muito, uma chuva bem forte está prestes a cair.
Doroteia, deitada de bruços, eleva um pouco a cabeça e pergunta se o carro dela continua lá, se não roubaram ainda. Olho para a rua e digo que sim, que o carro continua lá, estacionado debaixo de uma árvore.
Decido não acender o charuto, volto para cama e faço amor com Doroteia mais uma vez. Doroteia apelidou meu pênis de vetor, segmento de reta orientado. Ela tem talento para dar nomes, para perceber o traço singular de alguma coisa e ressaltar essa singularidade com uma palavra, um apelido, um apodo. Além de nomear meu pênis, Doroteia colocou numa das árvores aqui da rua o nome de árvore deprimida.
Etc.
Um ruído de impacto, de rachadura e de farfalho vem de fora e em seguida o apartamento fica sem luz. Vou à janela e vejo que a tempestade derrubou uma árvore, que esmagou exatamente o carro de Doroteia.
Pra vir aqui Doroteia contou alguma mentira ao marido e disse que voltaria para casa às dez da noite.
O carro esmagado debaixo da árvore é uma complicação que pode desencadear várias complicações: Doroteia chegar atrasada em casa, Doroteia chegar sem o carro, Doroteia ter de explicar ao marido por que chegou atrasada e sem o carro, etc.
Vamos para a sala discutir o que é melhor fazer. Sento-me no chão e acendo o charuto. Doroteia permanece de pé e fica andando de um lado para o outro.
Sugiro que ela volte de táxi e não diga nada, que é possível que por alguns dias o marido não perceba a ausência do carro dela na garagem do prédio.
Sugiro que ela diga que emprestou o carro para uma amiga.
Sugiro que ela diga ao marido que veio tomar um passe no centro espírita que tem aqui na rua – que ela estacionou o carro e mal tinha andado meio quarteirão quando ocorreu a queda da árvore.
Etc.
Um barulho de sirene vem da rua e Doroteia vai até a janela. Ela diz que é uma daquelas ambulâncias de resgate.
Descemos pelas escadas, visíveis por causa da luz de emergência, e chegamos à rua. Os bombeiros acabaram de tirar um homem aparentemente morto de dentro do carro e Doroteia diz, com os olhos arregalados e uma expressão de horror, é ele!, meu Deus, é ele!
Os bombeiros fazem os procedimentos de reanimação, que não surtem efeito, então um médico declara o óbito e o corpo do marido de Doroteia, sim, o marido de Doroteia, que sabia exatamente aonde ela havia ido, então pegou as chaves sobressalentes do carro e veio até aqui e entrou no carro e se escondeu no banco de trás pra fazer uma surpresa ou, quem sabe até mesmo, para matá-la, o corpo dele é coberto com aquela manta espelhada e eu vejo que Doroteia está chorando e eu respiro fundo e penso, puta que pariu.
sábado, 5 de dezembro de 2020
ENCONTRO AMOROSO, Eduardo Haak
EXTENSÕES, um livro de Eduardo Haak
extensões (contos, ficção curta) eduardo haak, 2021 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)

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